Rosa Luxemburgo, Simone de Bauvoir, Emma Goldman |
Quando no fatídico dia 15 de Janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, os dois líderes da Spartakusbund (Liga Espartaco), precursora do Partido Comunista Alemão, foram assassinados em Berlim, sob o olhar (e provavelmente com a conivência) do regime socialista então no poder, surgiu a lenda[1]. A lenda criada pela imagem propagandística da sanguinária “Rosa Vermelha”. E um dos livros que melhor trata este período crucial do socialismo europeu, desde as últimas décadas do século XX até esse dia, continua a ser o de J.P. Nettl[2] que, num golpe genial, biografa a vida de Rosa.
Os seus assassinos eram membros do ultranacionalista (e oficialmente ilegal) Freikorps, força paramilitar onde Hitler foi recrutar os seus assassinos mais proeminentes, e nas mãos da qual (segundo o testemunho do capitão Pabst, o último sobrevivente dos participantes no atentado) estava o Governo porque beneficiava do total apoio de Noske, o perito socialista em defesa nacional, à época responsável pelos assuntos militares.
Nem a República de Weimer foi tão sinistra. E o julgamento dos seus assassinos foi caricato como é lembrado por Hannah Arendt. Rosa não foi nenhuma grande estadista, nem pessoa grande do mundo, mas a sua morte provocou a cisão da esquerda europeia em partidos socialistas e comunistas, e uma vez que este crime foi apoiado pelo Governo (socialista), deu origem à conhecida “dança da morte” na Alemanha do pós-guerra, onde os assassinos da extrema-direita liquidaram vários dirigentes da extrema-esquerda.
Para a esquerda alemã, o assassinato de Rosa foi o ponto de não-retorno. Os desiludidos com o Partido Socialista, aproximaram-se dos comunistas (para não pactuarem com o assassínio de Rosa), acabando por ter uma desilusão ainda maior com o declínio moral e a desintegração politica do Partido Comunista.
Pouco tempo depois da sua morte, a sua reputação de “sanguinária vermelha” sofreu uma grande alteração. A publicação de dois pequenos volumes de cartas pessoais, de uma beleza comoventemente humana e poética bastaram para destruir essa imagem de mulher sanguinária (excepto nos círculos mais reaccionários). Surge então uma outra lenda. A da mulher que observava os pássaros e amava as flores, de quem os guardas se despediram com lágrimas nos olhos quando saiu da prisão. Porque essa estranha presa os tratava como seres humanos.
Outro episódio a acrescentar a esta segunda lenda, é contado por J.P. Nettl no seu livro. Quando em 1907, juntamente com a sua amiga Clara Zetkin (mais tarde a grande decana do comunismo alemão) foi dar um passeio, chegando atrasadas a um encontro com August Bebel (o patriarca do SPD), Rosa propôs então um epitáfio para si e para a sua Amiga: “Aqui jazem os dois últimos homens da social-democracia alemã”. Apesar disso todas as facções de esquerda afirmaram após a sua morte que tinha andado sempre enganada. Mas sete anos depois, rebentou a Primeira Guerra Mundial, que ninguém tinha considerado possível.
Rosa foi sempre incompreendida pelos seus e pelos outros. Sempre que surgia uma “Nova Esquerda”, o nome de Rosa brotava como as flores, o que abonava em seu favor e em favor dessa antiga geração de esquerda. Mas rapidamente era esquecida porque esses membros das “Novas Esquerdas”, não se davam ao trabalho de a ler, e muito menos entender. Nada do que ela disse ou escreveu, sobreviveu, exceptuando-se a sua crítica exacta ao bolchevique, porque era usada inadequadamente contra Estaline.
Rosa era sensata. Nunca concebeu a revolução (embora nela tenha participado) nem o marxismo, como artigos de fé. E mesmo quando se opunha à Igreja, tinha o cuidado de não atacar a religião.
È difícil hoje saber se Rosa foi marxista. Ortodoxa não foi com certeza. Para ela, Marx era “o melhor de todos os intérpretes da realidade”, até porque escreveu: “Tenho agora horror ao tão elogiado volume d’O Capital, de Marx, por causa dos seus floreados rococó à la Hegel ”. A realidade era o mais importante. Mais que a própria revolução. Recomendava aos amigos que lessem Marx, apenas pela sua ousadia, não pelas suas conclusões (os seus erros eram, para ela, evidentes) que ela própria criticou na sua pequena, mas fascinante brochura de 10 páginas, A Acumulação do Capital, escrita na cadeia.
Pertenceu ao “grupo dos iguais”, judeus polacos que mantiveram uma ligação íntima com o Partido; foi Amiga pessoal de Lenine; tinha uma relação pessoal com a família (que não sendo de tendências socialistas e revolucionárias tudo fez para a defender quando perseguida) irrepreensível; era multilingue: falava russo, alemão, polaco, francês, italiano e inglês; viveu com o único amante (e marido em termos práticos) da sua vida – Leo Jogiches[3] (Nettl chama a esse romance “ uma das grandes trágicas histórias de amor do socialismo”), porque essa geração ainda acreditava que o amor (o amor livre) acontece apenas uma vez; tinha amigos e admiradores (e isso agradava-lhe); durante a revolução russa de 1905, foi presa em Varsóvia, e os seus amigos juntaram dinheiro para pagar a fiança (provavelmente fornecido pelo partido alemão); Julius Wolf considerou-a a mais dotada de todos os seus alunos; a sua tese de Doutoramento[4] teve publicação imediata e ainda hoje é usada pelos estudantes de história polacos, tornando-a a especialista em assuntos polacos no partido alemão[5].
Os Acontecimentos que se seguiram à revolução russa deram razão ao que Rosa previra e escrevera (em 1918). Não viveu o tempo suficiente para ver até que ponto tivera razão, nem para assistir à rápida degradação dos partidos comunistas, descendentes directos da Revolução Russa, no mundo inteiro. Como, aliás, Lenine. Paul Levi, sucessor de Leo Jogiches na chefia da Spartakusbund, publicou, três anos depois da morte de Rosa, as observações desta. Seria perdoável e aceitável que Lenine tivesse respondido sem contemplações. Contudo, escreveu: “Respondemos com … uma bela e antiga fábula russa: a águia pode às vezes voar mais baixo do que a galinha, mas a galinha nunca se eleva às mesmas alturas que a águia. Rosa Luxemburgo … apesar dos [seus] erros… era e é uma águia”. E exigiu seguidamente que fosse publicada “a sua biografia e a edição completa das suas obras”, não expurgada de “erros”, recriminando os camaradas alemães pela sua “inacreditável” negligência no cumprimento desse dever. Isto aconteceu em 1922. Três anos depois, os sucessores de Lenine “bolchevizaram” o Partido Comunista Alemão e ordenaram uma ofensiva contra o legado de Rosa, que foi consumada por uma jovem militante oriunda de Viena, chamada Ruth Fischer.
Surgia a sarjeta que um dia Rosa havia apelidado de “nova espécie zoológica”. Não é preciso dizer que não foi publicado nenhum volume da obra completa desta mulher fascinante.
Arendet gostaria que, ainda que tardiamente, lhe fosse concedido o reconhecimento que merece, sobre a sua pessoa e sobre aquilo que fez. E que viesse a ocupar um lugar decente na formação de todos aqueles que se dedicam às ciências politicas. Nettl di-lo abertamente: “ As suas ideias devem estar presentes onde quer que se estude seriamente a história das ideias politicas”.
Havia tanto para dizer desta mulher extraordinária que acompanhou a conturbada História Humana dos inícios do século XX. Ficamo-nos por aqui. Nettl e Arendt (Homens em tempos sombrios) fizeram-no por nós.
Armando Palavras
Post- scriptum
O Comunismo arrastou, durante um século, as massas oprimidas de todo o Mundo, para um sonho de gloriosa redenção da pobreza e da injustiça. O que produziu, foram revoluções, massacres, burocracias, genocídios, ditaduras e regimes hediondos. Mas os seus seguidores não deixaram de seguir as bandeiras vermelhas em nome daqueles sonhos, quiçá, da esperança. E tão grandes eram que anularam a capacidade de ver a realidade. Foi aqui que Rosa Luxemburgo se distinguiu, ao criticar veemente a doutrina marxista.
[1] Rosa Luxemburgo foi assassinada com uma bala na cabeça dentro de um automóvel e atirada ao canal Landwehr. Foi o tenente Vogel que comandou as operações.
[2] Rosa Luxemburg, 2.vols. Oxford University Press, 1966.
[3] Nome que Nettl salva do esquecimento e que foi uma figura notável. Depois da morte de Rosa recusou-se a abandonar Berlim. Dois meses depois foi abatido pelas costas na esquadra da polícia.
[4] Em que defendia que o crescimento económico da Polónia dependia em absoluto do mercado russo.
[5] Seria interessante mencionar as teses de Eduard Bernstein; um debate famoso na controvérsia revisionista, onde à revolução se contrapunha a alternativa da reforma.
Sem comentários:
Enviar um comentário