Teolinda Gersão |
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a
gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre.
A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se
aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”,
”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do
sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal
e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela,
mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não,
mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete
colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar
etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um
“complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo
“complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex
nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há
por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos
ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento
podem ser instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento
prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas
sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o
tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o
determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no
modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser:
Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a
progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase
declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e
o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a
janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é
nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da
rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou
coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora
da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas
quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos
exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em
tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho
de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado
parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival,
pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do
modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia,
modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto,
cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e
microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou
ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por
palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes
palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada,
é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6
letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente
frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem
querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam
duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na
frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os
ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de
cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros
não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de
novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos
curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros,
detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo
formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me
apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve
redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma,
não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação
a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu
pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos
tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos
altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos
trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos
burros.
E agora é mesmo o fim. Vou
deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde
está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra,
enfiei-a no predicativo do sujeito.João Abelhudo, 8º ano, setôra, sem ofensa
para si, que até é simpática
NOTA:
Este texto é da autoria de Teolinda Gersão. Escritora, Professora
Catedrática aposentada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. Escreveu-o depois de ajudar os netos a estudar
Português. Colocou-o no Facebook
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