Estava eu tranquilamente a reler algumas
páginas de um dos livros de Glucksmann quando, de súbito, aparece na televisão
a imagem de alguns deputados socialistas a abraçarem o líder da CGTP na praça
situada em frente à Assembleia da República.
1 - Lembro-me como se fosse hoje. Na
livraria Leitura, na época talvez a melhor livraria portuguesa, havia, logo à
entrada, um pequeno espaço dedicado a edições em língua francesa e inglesa das
obras de diversos pensadores contemporâneos. Naquela tarde não resisti à
tentação de comprar o livro La Cuisinière et le Mangeur d'Hommes: Réflexions
sur l'État, le Marxisme et les Camps de Concentration, de André Glucksmann.
Como naquela época cultivava a rotina de não ter rotinas, troquei com gosto uma
qualquer aula na faculdade por uma sôfrega leitura que só terá terminado a
altas horas da noite. Estávamos no Outono de 1983. A dissidência soviética já
havia adquirido uma vasta ressonância internacional devido à publicação de O Arquipélago
de Gulag de Alexandre Soljenitsin. Thatcher e Reagan pontificavam politicamente
no mundo anglo-saxónico, em França, François Mitterrand preparava-se para, em
nome da opção europeia, abdicar de um programa político caracterizado por uma
mistura de neomarxismo com neokeynesianismo. A União Soviética parecia eterna
na sua impressionante imobilidade.
André Glucksmann (1937 - 2015) |
Nos últimos trinta anos, fiel ao
compromisso com a causa dos Direitos Humanos, André Glucksmann esteve presente
em múltiplos palcos da política internacional. Fê-lo em obediência a uma ideia:
os Homens não devem agir preferencialmente em função de uma noção metafísica do
Bem mas antes tendo como referência a preocupação de combater manifestações
concretas do Mal. Isso impediu-o de cair na tentação do dogmatismo ou de
soçobrar perante o apelo do relativismo cultural. Tal só foi possível pela via
do reconhecimento da vocação universal dos Direitos Humanos. Em nome disso
adoptou posições, tomou partido, correu riscos; acertou e também se enganou.
Nunca deixou de estar presente. A esquerda bem pensante não lhe perdoou o apoio
à intervenção militar no Iraque — identificaram-no imediatamente com o
neoconservadorismo norte-americano. Também aí estavam errados por uma simples
razão: é preferível falhar na análise por amor à liberdade do que acertar por
espírito de servidão.
2. Poucos no nosso país
compreenderam o carácter multímodo da cultura como Paulo Cunha e Silva.
Espírito voraz, apaixonado e jovial, já tinha marcado a vida da cidade do Porto
quando esta foi Capital Europeia da Cultura, em 2001. Nos últimos dois anos, enquanto
Vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto, estava a pôr em prática um
engenhoso e ambicioso plano de desenvolvimento cultural da cidade que abarcava
todas as dimensões, da criação ao urbanismo, da coesão social ao lazer. Fazia-o
com notório gosto e generosidade, manifestando sem reservas o seu encantamento
diante de um jovem talento como diante de um artista consagrado. Transformou a
programação cultural numa arte: o seu projecto artístico era revelar os
projectos artísticos dos outros, criando com eles narrativas que, sendo
indóceis e desafiantes, abriam caminho à alegria. É costume dizer-se que
ninguém é insubstituível. Ele era-o.
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