domingo, 14 de fevereiro de 2021

Marcelino da Mata e a memória selectiva de Portugal



 Marcelino da Mata morreu na quinta-feira, aos 80 anos, de covid-19. Os telejornais ignoraram a notícia. A maior parte dos portugueses não faz a menor ideia de quem foi Marcelino da Mata. Há uma forma particular de pobreza que afecta este país — a pobreza da nossa memória histórica, demasiado selectiva e formatada, que conduz à ignorância generalizada sempre que falamos de factos ou de pessoas que não encaixam na historiografia oficial do regime.

JM TAVARES - Jornal Público


Marcelino da Mata foi colocado do lado de fora da história da democracia portuguesa, e por isso morreu sem que o seu nome e a sua vida extraordinária fossem integrados na memória colectiva.

Há dois anos escrevi sobre Marcelino da Mata, o que deu origem a uma resposta de Vasco Lourenço e a uma réplica da minha parte. Na altura recebi dezenas de mails de leitores, a maior parte deles oriunda de antigos combatentes, alguns dos quais tinham conhecido Marcelino da Mata na Guiné. Havia um pouco de tudo nessa correspondência, desde gente que o considerava um herói português e relembrava os seus feitos, até pessoas que entendiam, à semelhança de Vasco Lourenço, que se tratava de um criminoso de guerra. Uns queriam enaltecê-lo, enquanto militar mais condecorado do Exército português; outros acolhiam a argumentação de Lourenço, de que há “actos que deveriam enterrar-se de vez”, encontrando virtudes no esquecimento selectivo da guerra colonial.

Este desejo de esquecer é compreensível do ponto de vista pessoal, mas é obviamente inaceitável do ponto de vista colectivo. Para a minha geração, nascida na década de 1970, e para as gerações posteriores, a guerra colonial é matéria dos livros de História, e quer Marcelino da Mata tenha sido um herói, quer tenha sido um criminoso de guerra, quer tenha sido (parece-me o mais provável) as duas coisas, o que importa é que a sua vida e as suas acções, na dúzia de anos em que andou a combater na Guiné, são uma grande história, que rompe com as interpretações primárias dos conflitos coloniais, e que singulariza essa complexidade. As grandes histórias existem para serem contadas e integradas no imaginário popular.

Como se explica, então, que Marcelino da Mata seja uma figura quase desconhecida, apenas resgatado na hora da morte por uma breve nota da Presidência e pelo pedido do CDS para que se decretasse luto nacional e funeral de Estado? Porque o seu perfill é triplamente incómodo para aquilo que se impôs como a narrativa oficial do Estado Novo, da guerra colonial, da descolonização ou das conquistas de Abril. Marcelino da Mata foi: 1) um negro que lutou ao lado dos portugueses na guerra colonial; 2) um herói do Estado Novo; 3) um militar barbaramente espancado por militares de extrema-esquerda ligados ao MRPP, em Lisboa, já em plena democracia. É um triplo desconforto, triplamente silenciado.

Aquilo que uma sociedade adulta deveria perceber — lição essencial em tempos maniqueístas — é que é perfeitamente possível alguém ser herói e ser vilão; um regime ser racista e oferecer a um negro as mais altas condecorações; um guineense preferir Portugal ao PAIGC; uma revolução libertadora torturar tão barbaramente quanto uma ditadura; e por aí fora. A democracia portuguesa criou uma história oficial e entrincheirou-se nela. Marcelino da Mata não cabia lá dentro. Morreu semidesconhecido, até ao dia em que alguém tenha a coragem de sair da trincheira para contar a sua história, como ele merecia e nós merecemos.        

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