Marcelino da Mata morreu na quinta-feira, aos 80 anos, de covid-19. Os telejornais ignoraram a notícia. A maior parte dos portugueses não faz a menor ideia de quem foi Marcelino da Mata. Há uma forma particular de pobreza que afecta este país — a pobreza da nossa memória histórica, demasiado selectiva e formatada, que conduz à ignorância generalizada sempre que falamos de factos ou de pessoas que não encaixam na historiografia oficial do regime.
JM TAVARES - Jornal Público
Há dois anos escrevi
sobre Marcelino da Mata, o que deu origem a uma resposta de Vasco Lourenço e a
uma réplica da minha parte. Na altura recebi dezenas de mails de leitores, a maior parte deles oriunda de antigos combatentes,
alguns dos quais tinham conhecido Marcelino da Mata na Guiné. Havia um pouco de
tudo nessa correspondência, desde gente que o considerava um herói português e
relembrava os seus feitos, até pessoas que entendiam, à semelhança de Vasco
Lourenço, que se tratava de um criminoso de guerra. Uns queriam enaltecê-lo,
enquanto militar mais condecorado do Exército português; outros acolhiam a
argumentação de Lourenço, de que há “actos que deveriam enterrar-se de vez”,
encontrando virtudes no esquecimento selectivo da guerra colonial.
Este desejo de esquecer é
compreensível do ponto de vista pessoal, mas é obviamente inaceitável do ponto
de vista colectivo. Para a minha geração, nascida na década de 1970, e para as
gerações posteriores, a guerra colonial é matéria dos livros de História, e quer
Marcelino da Mata tenha sido um herói, quer tenha sido um criminoso de guerra,
quer tenha sido (parece-me o mais provável) as duas coisas, o que importa é que
a sua vida e as suas acções, na dúzia de anos em que andou a combater na Guiné,
são uma grande história, que rompe com as interpretações primárias dos conflitos coloniais, e que singulariza essa
complexidade. As grandes histórias existem para serem contadas e integradas no
imaginário popular.
Como se explica, então,
que Marcelino da Mata seja uma figura quase desconhecida, apenas resgatado na hora da morte por
uma breve nota da Presidência e pelo pedido do CDS para que se decretasse luto
nacional e funeral de Estado? Porque o seu perfill é triplamente incómodo para aquilo que se
impôs como a narrativa oficial do Estado Novo, da
guerra colonial, da descolonização ou das conquistas de Abril. Marcelino da
Mata foi: 1) um negro que lutou ao lado dos portugueses na guerra colonial; 2)
um herói do Estado Novo; 3) um militar barbaramente espancado por militares de extrema-esquerda
ligados ao MRPP, em Lisboa, já em plena democracia. É um triplo desconforto,
triplamente silenciado.
Aquilo que uma sociedade
adulta deveria perceber — lição essencial em tempos maniqueístas — é que é perfeitamente
possível alguém ser herói e ser vilão; um regime ser racista e oferecer a um
negro as mais altas condecorações; um guineense preferir Portugal ao PAIGC; uma
revolução libertadora torturar tão barbaramente quanto uma ditadura; e por aí
fora. A democracia portuguesa criou uma história oficial e entrincheirou-se nela. Marcelino da
Mata não cabia lá dentro. Morreu semidesconhecido, até ao dia em que alguém
tenha a coragem de sair da trincheira para contar a sua história, como ele
merecia e nós merecemos.
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