quarta-feira, 28 de outubro de 2020

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (3)

 

Por Telmo Verdelho

 

PREFÁCIO

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA

DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (3)

 

6. Tem para nós muito especial interesse uma referência às castanhas que vem na parte final da Bucólica I porque é retomada, como citação de prestígio erudito, em dois lugares da obra de Eça de Queirós. A Bucólica I é o mais famoso de todos os textos líricos do Mantuano. Nele se encontra a expressão "fortunate senex" que se ouvia com frequência, entre os bons conversadores, no tempo em que se estudava latim. Louva-se o "afortunado velho" que repousa à sombra do arvoredo ("recubans sub tegmine fagi" ‒ sob a copa das faias), longe do bulício e da escravatura da cidade. Títiro, o afortunado velho, agradece relembrando que "um deus fez aquele remanso para os humanos" ‒ "deus nobis haec otia fecit". No final da animada conversa, quando já se aproximava o anoitecer e o jovem interlocutor, Melibeu, annciava a partida, Títiro lamentava a sua despedida, e pedia-lhe que  "descansasse ali, com ele, naquela noite, sobre o tapete verde da folhagem. Tinham fruta madura, castanhas doces e bastante queijo, e àquela hora, já fumegavam ao longe as choupanas das quintas e alongavam-se as sombras dos altos montes" ‒ "Hic tamen hanc mecum poteras requiescere noctem fronde super uiridi: sunt nobis mitia poma, castaneae molles et pressi copia lactis, et iam summa procul uillarum culmina fumant, maioresque cadunt altis de montibus umbrae" (Bucólica 1.81).

Este episódio, em que entra o convite ao convívio com castanhas, é intertextualizado por Eça de Queiros, num perfil caricatural de erudição. No romance A Capital, a personagem mais importante cita o "divino Virgílio". Eça de Queirós, sempre impiedosamente irónico, aproveita a citação do poeta latino, como um ornamento de recomendação e distinção intelectual. Vale a pena relembrar: Artur Corvelo escreve um bilhete "muito literário" dirigido a Melchior, um jornalista tão presunçoso como desqualificado, oportunista e pouco confiável, lembrando que tinha faltado a um encontro que lhe prometera:  "Esqueceu-se de que prometeu vir partilhar comigo do leite e castanhas, de que fala o divino Virgílio...” (A Capital, cap. III).

Também em O Crime do Padre Amaro, se repete a citação erudita do Mantuano, na conversação de um jantar que reunia vários padres na diocese de Leiria. É posta na boca de um dos padres que "tinha fama de ser grande latinista": "Natário tornara-se terno, falava das suas sobrinhas, «as suas duas rosas», e citava Virgílio, molhando as castanhas em vinho" (O Crime do Padre Amaro, cap. VII).

A evocação da castanha e do castanheiro, na obra do grande patriarca dos poetas que foi Virgílio, foi retomada e aludida na longa tradição literária europeia. Em Portugal, entre outros testemunhos, além dos exemplos já referidos, deve recordar-se Camilo Castelo Branco que retoca a descrição duma personagem, acrescentando: "lia as Geórgicas de Virgílio à sombra dos castanhais" (Eusébio Macário, cap. I).

 

7. Além da tradição virgiliana, encontram-se na literatura portuguesa bastantes alusões às castanhas, alargadas, com mais frequência, aos castanheiros, que são relembrados como objeto de contemplação e de motivação literária.

Os castanheiros eram árvores omnipresentes no horizonte campestre português, certamente desde a romanização e, com toda a certeza, desde o início da nacionalidade. Temos suficiente notícia documental que se lhe refere, e muitos escritores dão testemunho nas suas obras dessa airosa, umbrosa, nemorosa e secular presença entre a paisagem arborizada portuguesa, até ao final do século XIX. Depois os castanheiros começaram a cair e a morrer, sem substituição, sob a inclemência de epidemias fitossanitárias, e desfavorecidos pela concorrência de novos comestíveis, de cultura intensiva, de fácil conservação, e ricos em hidratos de carbono, como o milho, o arroz e sobretudo as batatas que, em alguns lugares e durante algum tempo, se chamavam curiosamente "castanhetas" ou "castanholas" ‒ quem o diz é Camilo Castelo Branco: "A ceia era um caldo de castanhas piladas bem adubadas de toicinho bem assazoado de batatas, a que lá chamam castanholas" (Noites de Lamego).

O sustento imprescindível da castanha na sobrevivência alimentar dos portugueses obliterou-se. O seu grangeio manteve-se apenas, privilegiada exceção, em algumas regiões que ainda hoje conservam esse precioso legado.

A "morte dos castanheiros" foi sentida e lamentada em textos de ficção e em composições líricas. São lembrança obrigatória as quintilhas de Guerra Junqueiro, datadas de 1890, evocando "o velho castanheiro ingente" caído e transportado em préstito fúnebre:

"Eis no carro morto o castanheiro [...] que feliz cadáver que até cheira bem [...] que trezentos anos sobre uma montanha / seus trezentos braços de colosso ergueu [...] E também quisera, mortos castanheiros, / Como vós erguer-me para o sol a flux, / Dar trezentos anos sombra aos pegureiros, / E num lar de choça, em festivaes braseiros, / A aquecer velhinhos, desfazer-me em luz ...".

Outro testemunho dramático sobre o corte de um castanheiro pode ler-se em A Morgadinha dos Canaviais (1868) de Júlio Dinis ‒ a árvore majestosa é sacrificada para permitir a abertura duma estrada:

«A demolição prosseguia com ardor e atividade. Em pouco tempo, só restavam da casa os muros, meio derrocados; e, no quintal, a serra e o machado começavam a exercer no tronco da última árvore a sua obra destruidora. Era o castanheiro da entrada, gigante de outro século, que desafiara os raios de muitos invernos sucessivos.

A exaltação do ervanário cresceu naquele momento. Ergueu-se, pálido e trémulo, apoiou-se no ombro de Augusto, murmurando:

— Também o castanheiro! Já era árvore quando eu nasci! Como eles se encarniçam contra ele![...] O castanheiro começou a oscilar.

— Repara — disse o ervanário, cada vez em tom mais baixo, e apertando o braço de Augusto. — Ele já treme! Não vês? Lá lhe deitam a corda. Vai cair! Parece-me que estou a sentir aquele estalar de fibras.

E a árvore caiu com fragor no chão, que por tanto tempo cobrira de sombras. Estava ultimada a obra.

O ervanário encostou a cabeça ao ombro de Augusto e rompeu em soluços» (A Morgadinha dos Canaviais, cap. 21).

Nestes episódios literários pode pressentir-se uma dimensão simbólica que nos aproxima do declínio do cultivo e consumo da castanha em Portugal. Foi uma inapercebida e pouco festiva mudança, hoje quase completamente esquecida, nos hábitos alimentares e no horizonte campestre de grande parte da paisagem rural e circum-urbana.

(Continua)

1 comentário:

  1. Este livro vai valer a pena, tão somente já, só pelo prefácio! Está cá tudo ...

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