Por Telmo Verdelho
CELEBRANDO
A MEMÓRIA LITERÁRIA
DO
CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (3)
6. Tem para nós muito
especial interesse uma referência às castanhas que vem na parte final da
Bucólica I porque é retomada, como citação de prestígio erudito, em dois
lugares da obra de Eça de Queirós. A Bucólica I é o mais famoso de todos os
textos líricos do Mantuano. Nele se encontra a expressão "fortunate
senex" que se ouvia com frequência, entre os bons conversadores, no tempo
em que se estudava latim. Louva-se o "afortunado velho" que repousa à
sombra do arvoredo ("recubans sub tegmine fagi" ‒ sob a copa das
faias), longe do bulício e da escravatura da cidade. Títiro, o afortunado
velho, agradece relembrando que "um deus fez aquele remanso para os
humanos" ‒ "deus nobis haec otia fecit". No final da animada
conversa, quando já se aproximava o anoitecer e o jovem interlocutor, Melibeu,
annciava a partida, Títiro lamentava a sua despedida, e pedia-lhe que "descansasse ali, com ele, naquela
noite, sobre o tapete verde da folhagem. Tinham fruta madura, castanhas doces e
bastante queijo, e àquela hora, já fumegavam ao longe as choupanas das quintas
e alongavam-se as sombras dos altos montes" ‒ "Hic tamen hanc mecum
poteras requiescere noctem fronde super uiridi: sunt nobis mitia poma,
castaneae molles et pressi copia lactis, et iam summa procul uillarum culmina
fumant, maioresque cadunt altis de montibus umbrae" (Bucólica 1.81).
Também em O Crime do
Padre Amaro, se repete a citação erudita do Mantuano, na conversação de um
jantar que reunia vários padres na diocese de Leiria. É posta na boca de um dos
padres que "tinha fama de ser grande latinista": "Natário tornara-se
terno, falava das suas sobrinhas, «as suas duas rosas», e citava Virgílio,
molhando as castanhas em vinho" (O Crime do Padre Amaro, cap. VII).
A evocação da castanha e
do castanheiro, na obra do grande patriarca dos poetas que foi Virgílio, foi
retomada e aludida na longa tradição literária europeia. Em Portugal, entre
outros testemunhos, além dos exemplos já referidos, deve recordar-se Camilo
Castelo Branco que retoca a descrição duma personagem, acrescentando: "lia
as Geórgicas de Virgílio à sombra dos castanhais" (Eusébio Macário, cap.
I).
7. Além da tradição
virgiliana, encontram-se na literatura portuguesa bastantes alusões às
castanhas, alargadas, com mais frequência, aos castanheiros, que são
relembrados como objeto de contemplação e de motivação literária.
Os castanheiros eram
árvores omnipresentes no horizonte campestre português, certamente desde a
romanização e, com toda a certeza, desde o início da nacionalidade. Temos
suficiente notícia documental que se lhe refere, e muitos escritores dão testemunho
nas suas obras dessa airosa, umbrosa, nemorosa e secular presença entre a
paisagem arborizada portuguesa, até ao final do século XIX. Depois os
castanheiros começaram a cair e a morrer, sem substituição, sob a inclemência
de epidemias fitossanitárias, e desfavorecidos pela concorrência de novos
comestíveis, de cultura intensiva, de fácil conservação, e ricos em hidratos de
carbono, como o milho, o arroz e sobretudo as batatas que, em alguns lugares e
durante algum tempo, se chamavam curiosamente "castanhetas" ou
"castanholas" ‒ quem o diz é Camilo Castelo Branco: "A ceia era
um caldo de castanhas piladas bem adubadas de toicinho bem assazoado de
batatas, a que lá chamam castanholas" (Noites de Lamego).
O sustento imprescindível
da castanha na sobrevivência alimentar dos portugueses obliterou-se. O seu
grangeio manteve-se apenas, privilegiada exceção, em algumas regiões que ainda
hoje conservam esse precioso legado.
A "morte dos
castanheiros" foi sentida e lamentada em textos de ficção e em composições
líricas. São lembrança obrigatória as quintilhas de Guerra Junqueiro, datadas
de 1890, evocando "o velho castanheiro ingente" caído e transportado
em préstito fúnebre:
"Eis no carro morto
o castanheiro [...] que feliz cadáver que até cheira bem [...] que trezentos
anos sobre uma montanha / seus trezentos braços de colosso ergueu [...] E
também quisera, mortos castanheiros, / Como vós erguer-me para o sol a flux, /
Dar trezentos anos sombra aos pegureiros, / E num lar de choça, em festivaes
braseiros, / A aquecer velhinhos, desfazer-me em luz ...".
Outro testemunho
dramático sobre o corte de um castanheiro pode ler-se em A Morgadinha dos
Canaviais (1868) de Júlio Dinis ‒ a árvore majestosa é sacrificada para
permitir a abertura duma estrada:
«A demolição prosseguia
com ardor e atividade. Em pouco tempo, só restavam da casa os muros, meio
derrocados; e, no quintal, a serra e o machado começavam a exercer no tronco da
última árvore a sua obra destruidora. Era o castanheiro da entrada, gigante de
outro século, que desafiara os raios de muitos invernos sucessivos.
A exaltação do ervanário
cresceu naquele momento. Ergueu-se, pálido e trémulo, apoiou-se no ombro de
Augusto, murmurando:
— Também o castanheiro!
Já era árvore quando eu nasci! Como eles se encarniçam contra ele![...] O
castanheiro começou a oscilar.
— Repara — disse o
ervanário, cada vez em tom mais baixo, e apertando o braço de Augusto. — Ele já
treme! Não vês? Lá lhe deitam a corda. Vai cair! Parece-me que estou a sentir
aquele estalar de fibras.
E a árvore caiu com
fragor no chão, que por tanto tempo cobrira de sombras. Estava ultimada a obra.
O ervanário encostou a cabeça ao ombro de Augusto e rompeu em soluços» (A Morgadinha dos Canaviais, cap. 21).
Nestes episódios
literários pode pressentir-se uma dimensão simbólica que nos aproxima do
declínio do cultivo e consumo da castanha em Portugal. Foi uma inapercebida e
pouco festiva mudança, hoje quase completamente esquecida, nos hábitos
alimentares e no horizonte campestre de grande parte da paisagem rural e
circum-urbana.
Este livro vai valer a pena, tão somente já, só pelo prefácio! Está cá tudo ...
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