Por Telmo Verdelho
PREFÁCIOCELEBRANDO
A MEMÓRIA LITERÁRIA
DO
CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (2)
Cabe aqui o testemunho de
José Inácio Roquete, um influente pedagogo do século XIX, que publicou
dicionários, doutrinou sobre a língua e a arte literária, e foi também árbitro
do bom gosto e do bom tom na cortesia e usos cívicos da sociedade
"distinta". Escreveu um manual de civilidade com um importante
capítulo dedicado aos "Jantares e banquetes", em que pormenoriza o
ritual da arte da mesa e alude à jerarquia dos alimentos. Sobre as castanhas,
desaprova a sua eleição para as sobremesas de cerimónia:
"Numa sobremesa de
banquete de cerimónia não têm entrada as castanhas, avelãs, e amêndoas, a não
serem mui raras e fora de estação. Conservas doces em boiões, nozes, frutas
d'espinho ou de caroço, biscoitos, etc., não aparecem em pratos senão nos
jantares sem cerimónia." [Código do bom tom ou regras da civilidade e de bem viver no
XIXº século, Paris Aillaud, 1845).
O castigado prestígio das
castanhas nas sobremesas de "bom gosto e de bom tom" não significa a
depreciação do seu justo valor como grande e apreciado suporte da alimentação
quotidiana. Deve antes subentender-se que ela se destaca como mantimento geral
e comum e generosamente popular, e por isso poderá não fazer figura, na seleta
classificação das iguarias prestigiadas pela sua raridade, mas terá sempre a
honra soberana dos alimentos que fazem "o pão de cada dia".
4. Esta condição de grau
indistintivo, entre a aristocracia dos comestíveis, repercute-se nas
referências e citações que surgem ocasionalmente em obras da grande memória
literária. Raramente se encontra um literato que lhe dedique um olhar de
expressa referência, aplicado e agradado, como quem estima e saboreia. Podem
ler-se, em todo o caso, citações de boa lembrança na maior parte dos nossos
autores. São ocorrências esparsas e ao correr da pena, mas com bom espírito e
curiosas observações. Merecem coleta e oferecem aprazível leitura.
Também na memória
literária clássica, especialmente latina, se podem ler frequentes alusões e,
para além da já citada proposta gastronómica do cozinheiro Apício, encontram-se
sobretudo notícias de informação agronómica e botânica. No espólio
bibliográfico da antiguidade latina e da Idade Média conservam-se dezenas de
textos e pequenos tratados sobre as castanhas, com estudiosas observações sobre
a sua cultura, a técnica de sementeira, de plantação, de colheita e conservação
e também de aproveitamento alimentar.
Na Roma antiga, vários
historiadores e tratadistas "da natureza das coisas" dão notícia
sobre a castanha e o castanheiro. Avultam entre eles os dois Plínios (o Velho e
o Moço), o enciclopedista Varrão, Columela, Garguílio Marcial e Paládio.
5. Em textos estritamente
literários, surpreendem-se referências à castanha e ao castanheiro, na obra dos
mais celebrados autores, como, entre outros: Ovídio (43aC-17dC), o poeta do
amor e da melancolia; Marco Valério Marcial (40-104), poeta satírico; e
sobretudo o príncipe dos poetas latinos Públio Virgílio Marão (70-19 a. C.)
que, no discorrer poético, os nomeia, por oportuna lembrança, nas Geórgicas e
nas Bucólicas, sem se demorar na sua descrição. As castanhas e os castanheiros
faziam parte do contexto quotidiano e, pelo seu registo, passaram a ser
referências com horizonte transtextual, porque se repercutiram longamente na
memória escrita das línguas modernas. Algumas ocorrências eventuais neste
trânsito literário merecem registo; foram lidas e recitadas por muitos milhares
de estudantes e escritores eruditos.
Na Bucólica II
confidencia o poeta que a sua querida Amarílis "gostava de castanhas e
nozes" ("castaneasque nuces, mea quas Amaryllis amabat" ‒
II.52). Este verso foi depois retomado por outros autores, nomeadamente por
Ovídio na Ars amatória (2.268), e ainda no renascimento italiano pelo poeta
Calímaco (1437-1496) ("castaneas quales Amaryllis amabat" ‒
Epigrammatum libri duo, 1, 38), e por outros, confirmando o optado e namorado
gosto pelas castanhas.
No livro segundo das
Geórgicas, dedicado às plantas, especialmente à vinha e à oliveira, citam-se
também os castanheiros como árvores de grande porte, que se distinguem da muita
vegetação que surge no campo de modo espontâneo, tais as giestas, os choupos e
os salgueiros; diferentemente, os castanheiros ("altae castaneae") têm
de ser semeados ("posito surgunt de semine" ‒ II.15). Almeida
Garrett, no Alfageme de Santarém, vai relembrar os "castanheiros tão
altos", retomando justamente a mesma adjetivação, e Júlio Dinis repete
precisamente a expressão "altos castanheiros" e admira a sua "majestade"
(Inéditos).
A lição do poeta latino
teve amplo acolhimento na língua portuguesa. Da Bucólica VII recolhe-se uma
citação no monumental Vocabulário Português e Latino (1712-1728) de Rafael
Bluteau, para autorizar a descrição do "ouriço": "Picante vestidura
e cuberta verde da castanha, com muitos bicos ... Echinatus castaneae calix.
Plin. [...] A castanha, estando ainda dentro no seu ouriço ‒ Castanea hirsuta.
Virgil." (Vocabulário, t. 6, p.145).
O qualificativo "hirsuto" será o epíteto mais generalizado para a descrição do ouriço da castanha em toda a subsequente tradição literária, em latim e nas línguas europeias em geral. O texto de Virgílio foi o modelo: "castaneae hirsutae, strata iacent passim sua quaeque sub arbore" ‒ "castanhas hirsutas espalham-se no chão sob a árvore" (Bucólica VII, 53).
(Continua)
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