terça-feira, 27 de outubro de 2020

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (2)

 

Por  Telmo Verdelho

PREFÁCIO

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA

DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (2)

3. Em todo o caso, sem desconsiderar a sua qualidade nutriente, a excelência dietética e até a sua grande aptidão culinária, não poderemos disfarçar que ela é prejudicada por um estatuto relativamente modesto, entre a hierarquia dos alimentos reis da mesa. As guloseimas seletas, abundantemente tratadas e louvadas na literatura do banquetear faustoso, são geralmente mais pobres, sob o ponto de vista alimentar, mas mais especiosas na arte de acariciar o gosto. As castanhas são classificadas e injustamente banalizadas no amplo grupo dos comestíveis de uso comum, que é composto pelas vitualhas abundantes, populares e imprescindíveis, mas mais ou menos indiferenciadamente graduadas entre os "pratos de acompanhamento". As castanhas não concorrem com a privilegiada elite dos manjares gulosos ou lambareiros que preenchem itens intermináveis no receituário dos mestres de cozinha.

Cabe aqui o testemunho de José Inácio Roquete, um influente pedagogo do século XIX, que publicou dicionários, doutrinou sobre a língua e a arte literária, e foi também árbitro do bom gosto e do bom tom na cortesia e usos cívicos da sociedade "distinta". Escreveu um manual de civilidade com um importante capítulo dedicado aos "Jantares e banquetes", em que pormenoriza o ritual da arte da mesa e alude à jerarquia dos alimentos. Sobre as castanhas, desaprova a sua eleição para as sobremesas de cerimónia:

"Numa sobremesa de banquete de cerimónia não têm entrada as castanhas, avelãs, e amêndoas, a não serem mui raras e fora de estação. Conservas doces em boiões, nozes, frutas d'espinho ou de caroço, biscoitos, etc., não aparecem em pratos senão nos jantares sem cerimónia." [Código do bom tom ou  regras da civilidade e de bem viver no XIXº  século, Paris Aillaud, 1845).

O castigado prestígio das castanhas nas sobremesas de "bom gosto e de bom tom" não significa a depreciação do seu justo valor como grande e apreciado suporte da alimentação quotidiana. Deve antes subentender-se que ela se destaca como mantimento geral e comum e generosamente popular, e por isso poderá não fazer figura, na seleta classificação das iguarias prestigiadas pela sua raridade, mas terá sempre a honra soberana dos alimentos que fazem "o pão de cada dia".

 

4. Esta condição de grau indistintivo, entre a aristocracia dos comestíveis, repercute-se nas referências e citações que surgem ocasionalmente em obras da grande memória literária. Raramente se encontra um literato que lhe dedique um olhar de expressa referência, aplicado e agradado, como quem estima e saboreia. Podem ler-se, em todo o caso, citações de boa lembrança na maior parte dos nossos autores. São ocorrências esparsas e ao correr da pena, mas com bom espírito e curiosas observações. Merecem coleta e oferecem aprazível leitura.

Também na memória literária clássica, especialmente latina, se podem ler frequentes alusões e, para além da já citada proposta gastronómica do cozinheiro Apício, encontram-se sobretudo notícias de informação agronómica e botânica. No espólio bibliográfico da antiguidade latina e da Idade Média conservam-se dezenas de textos e pequenos tratados sobre as castanhas, com estudiosas observações sobre a sua cultura, a técnica de sementeira, de plantação, de colheita e conservação e também de aproveitamento alimentar.

Na Roma antiga, vários historiadores e tratadistas "da natureza das coisas" dão notícia sobre a castanha e o castanheiro. Avultam entre eles os dois Plínios (o Velho e o Moço), o enciclopedista Varrão, Columela, Garguílio Marcial e Paládio.

 

5. Em textos estritamente literários, surpreendem-se referências à castanha e ao castanheiro, na obra dos mais celebrados autores, como, entre outros: Ovídio (43aC-17dC), o poeta do amor e da melancolia; Marco Valério Marcial (40-104), poeta satírico; e sobretudo o príncipe dos poetas latinos Públio Virgílio Marão (70-19 a. C.) que, no discorrer poético, os nomeia, por oportuna lembrança, nas Geórgicas e nas Bucólicas, sem se demorar na sua descrição. As castanhas e os castanheiros faziam parte do contexto quotidiano e, pelo seu registo, passaram a ser referências com horizonte transtextual, porque se repercutiram longamente na memória escrita das línguas modernas. Algumas ocorrências eventuais neste trânsito literário merecem registo; foram lidas e recitadas por muitos milhares de estudantes e escritores eruditos.

Na Bucólica II confidencia o poeta que a sua querida Amarílis "gostava de castanhas e nozes" ("castaneasque nuces, mea quas Amaryllis amabat" ‒ II.52). Este verso foi depois retomado por outros autores, nomeadamente por Ovídio na Ars amatória (2.268), e ainda no renascimento italiano pelo poeta Calímaco (1437-1496) ("castaneas quales Amaryllis amabat" ‒ Epigrammatum libri duo, 1, 38), e por outros, confirmando o optado e namorado gosto pelas castanhas.

No livro segundo das Geórgicas, dedicado às plantas, especialmente à vinha e à oliveira, citam-se também os castanheiros como árvores de grande porte, que se distinguem da muita vegetação que surge no campo de modo espontâneo, tais as giestas, os choupos e os salgueiros; diferentemente, os castanheiros ("altae castaneae") têm de ser semeados ("posito surgunt de semine" ‒ II.15). Almeida Garrett, no Alfageme de Santarém, vai relembrar os "castanheiros tão altos", retomando justamente a mesma adjetivação, e Júlio Dinis repete precisamente a expressão "altos castanheiros" e admira a sua "majestade" (Inéditos).

A lição do poeta latino teve amplo acolhimento na língua portuguesa. Da Bucólica VII recolhe-se uma citação no monumental Vocabulário Português e Latino (1712-1728) de Rafael Bluteau, para autorizar a descrição do "ouriço": "Picante vestidura e cuberta verde da castanha, com muitos bicos ... Echinatus castaneae calix. Plin. [...] A castanha, estando ainda dentro no seu ouriço ‒ Castanea hirsuta. Virgil." (Vocabulário, t. 6, p.145).

O qualificativo "hirsuto" será o epíteto mais generalizado para a descrição do ouriço da castanha em toda a subsequente tradição literária, em latim e nas línguas europeias em geral. O texto de Virgílio foi o modelo: "castaneae hirsutae, strata iacent passim sua quaeque sub arbore" ‒ "castanhas hirsutas espalham-se no chão sob a árvore" (Bucólica VII, 53).

(Continua)

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