terça-feira, 27 de outubro de 2020

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (1)

Por TELMO  VERDELHO

PREFÁCIO


CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA

DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (1)

 

1. Fruto antiquíssimo, fruível, nutritivo, especioso na graça da sua forma, aprazível para os olhos, gostoso e festivo para a celebração do simpósio familiar, a castanha é mensageira de "saberes e sabores" da mesa e da memória cultivada. Na história da alimentação do mundo ocidental, era uma das derradeiras alegrias das colheitas de outono, que se ofereciam como um dom celeste, para adoçar e mitigar a austeridade desapiedada dos novembros e dezembros e de todo o inverno. Era um saboreado conforto, na apertada travessia das fomes, ao longo daquele tempo inóspito, friorento e escasso em flores.

Entretanto, moveu-se a roda dos alimentos, no ciclo imparável da civilização. A castanha sofreu a concorrência de outros frutos e de novas artes no cultivo da terra; sobrevieram outros nomes de árvores e de hortícolas diferentes daqueles que sustentaram os nossos avós.

Além disso, a cidade arredou-se do campo e desprezou a sua vizinhança. Os citadinos parecem julgar que as hortas e os pomares são uma espécie de fábricas e laboratórios da engenharia alimentar que lhes vai compondo a mesa. Preocupam-se com a dietética, uma ciência nova-rica que sintetiza as vitaminas, pesa os hidratos de carbono, contabiliza as proteinas e especifica os nutrientes; mas ignoram a narrativa das lides agrárias; não sabem porque é que "o castanheiro quer em julho ferver e em agosto beber"; não se preocupam com "a chuva no nabal e o sol na eira"; têm memória inconcreta da floração festiva das plantas, e não apreciam o prazer de contemplar um "granzoal azul de grão de bico".

Na vida urbana, em geral não se ouve a conversação das árvores, são todas mais ou menos iguais; poucos reconhecem e distinguem uma oliveira piedosa e ascética, dum castanheiro de porte arbóreo, nobre, frondoso e soberano entre as frutíferas. Na realidade, nem sabemos bem o que comemos: foi-se perdendo a fruição antiga do percurso e da "mensagem rural" dos alimentos.

Nesta erosão da memória campestre, a cultura da castanha foi das mais afrontadas pelo distanciamento, pela redução do consumo e pelo abandono do espaço de grangeio, agora confinado em áreas limitadas da Beira Interior e da Terra Fria Transmontana. O fruto do castanheiro deixou de ser uma presença assídua e familiar na maior parte da terra agricultada, e está agora mais ausente na feira da mesa e na praça do discurso.

Certamente, sempre alguma coisa terá sido ganha nesta carreira do progresso, mas inexoravelmente alguma coisa se perdeu. Subsiste a produção que satisfaz a procura sasonal, e resta-nos ainda hoje a memória benfazeja que reconforta os corações, se soubermos cultivá-la. Alguma coisa poderemos ainda saber e revisitar da vivência daquele tempo em que as árvores frutíferas, e especialmente o castanheiro, habitavam próximo da cidade, eram populares, coloriam o convívio frutuoso e amparavam o sustento de todos os dias, das classes ociosas e laboriosas.

Desterrando ausências, em boa hora nos surge esta Antologia como um cultivado compromisso com a boa memória e um prestante refazimento daquele convívio frutuoso que deixou reminiscências na voz do povo, e na alma dos artistas e poetas. É uma publicação que mobiliza a criação artística; promove um verdadeiro florilégio de escritores; prestigia o organizador e responsável autoral e enriquece as letras portuguesas.

 Vem dar sequência ("gloriose finis coronat opus"), a um conjunto bem composto de livros, publicados ao longo dos últimos vinte anos, elaborados e editados por Jorge Lage, com raro esmero e louvável devoção cultural militante e otimista. Neles se encontra notícia copiosa, e a mais abragente até agora recolhida em Portugal, sobre a castanha. É uma série bibliográfica despretensiosa, mas muito apelativa, com pesquisada informação sobre o trânsito produtivo, sobre o consumo e a fortuna culinária, sobre as artes, as tradições, e tudo o mais que a inventiva dos nossos antepassados foi acumulando e que Jorge Lage, com infatigável curiosidade, descobriu e deslindou na arca da memória, no estudo, na indagação etnográfica e na observação de campo. Toda essa herança foi por ele retomada com diligência e critério, e podemos agora apreciá-la, não só como legado cultural — Quem me dera cá o tempo..., mas também como um património histórico e como indicador de civilização que se prolonga na criatividade e na elaboração poética selecionada nesta Antologia da Maria Castanha.

Este volume é uma celebração literária afetuosa e quase outonal; faustosa e seleta pela colaboração agenciada; e finalmente, gloriosa e de suave nostalgia pela evocação desse fruto de referência fascinante na história da alimentação humana. Repercute e prolonga uma ancestral memória de mais de dois mil anos de referência escrita, com um sabor literário que vale a pena recordar.

 

2. A castanha enche a mão duma criança, é um "pomo" de beleza rara e singular, surpreendente pelas múltiplas aparências no percurso da sua formação, desde o franjado florido da primavera até à degustação jubilosa, na mesa ou no magusto campestre. Protege-se com uma tríplice vestimenta: o ouriço, a casca propriamente dita e a pele. Três véus de elaborada tessitura, bem adequados à proteção e ao ornamento da aparência. O ouriço, áspero e hirsuto, é defesa contra os predadores; depois vem o tegumento lenhoso que surpreende os olhos, lúbrico e colorido entre o vermelho e negro, "ex rutilo nigrescens", num verniz requintado e sedutor; finalmente reveste-se com um véu da intimidade, como um último desafio para o desejo.

É consensual, entre a sabedora sociedade dos amantes da boa mesa, que as castanhas têm uma poderosa mensagem gustativa e, por isso, têm registo privilegiado em toda a literatura gastronómica desde a Roma antiga, sobretudo como base ou acompanhamento de outras iguarias. Encontra-se uma receita de castanhas num livro das artes da cozinha, escrito há cerca de 2.000 anos. É o primeiro tratado de culinária conhecido, na memória bibliográfica ocidental: De re coquinaria, tradicionalmente atribuído a Marcus Gravius Apicius, que floresceu sendo Tibério imperador (14-37).

Entretanto, os manuais de cozinha, a partir do séc. XVI, foram acrescentando muitas outras receitas. Jorge Lage, o grande tratadista dos múltiplos distritos temáticos da castanha, coligiu e publicou várias centenas de receitas que promovem a castanha como uma das mais importantes referências da história da alimentação no mundo ocidental.  

(Continua)   

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