Por TELMO VERDELHO
PREFÁCIO
CELEBRANDO A MEMÓRIA
LITERÁRIA
DO CASTANHEIRO E DO SEU
FRUTO (1)
Entretanto, moveu-se a
roda dos alimentos, no ciclo imparável da civilização. A castanha sofreu a
concorrência de outros frutos e de novas artes no cultivo da terra; sobrevieram
outros nomes de árvores e de hortícolas diferentes daqueles que sustentaram os
nossos avós.
Além disso, a cidade
arredou-se do campo e desprezou a sua vizinhança. Os citadinos parecem julgar
que as hortas e os pomares são uma espécie de fábricas e laboratórios da
engenharia alimentar que lhes vai compondo a mesa. Preocupam-se com a
dietética, uma ciência nova-rica que sintetiza as vitaminas, pesa os hidratos
de carbono, contabiliza as proteinas e especifica os nutrientes; mas ignoram a
narrativa das lides agrárias; não sabem porque é que "o castanheiro quer
em julho ferver e em agosto beber"; não se preocupam com "a chuva no
nabal e o sol na eira"; têm memória inconcreta da floração festiva das
plantas, e não apreciam o prazer de contemplar um "granzoal azul de grão
de bico".
Na vida urbana, em geral
não se ouve a conversação das árvores, são todas mais ou menos iguais; poucos
reconhecem e distinguem uma oliveira piedosa e ascética, dum castanheiro de
porte arbóreo, nobre, frondoso e soberano entre as frutíferas. Na realidade,
nem sabemos bem o que comemos: foi-se perdendo a fruição antiga do percurso e
da "mensagem rural" dos alimentos.
Nesta erosão da memória
campestre, a cultura da castanha foi das mais afrontadas pelo distanciamento,
pela redução do consumo e pelo abandono do espaço de grangeio, agora confinado
em áreas limitadas da Beira Interior e da Terra Fria Transmontana. O fruto do
castanheiro deixou de ser uma presença assídua e familiar na maior parte da
terra agricultada, e está agora mais ausente na feira da mesa e na praça do
discurso.
Certamente, sempre alguma
coisa terá sido ganha nesta carreira do progresso, mas inexoravelmente alguma
coisa se perdeu. Subsiste a produção que satisfaz a procura sasonal, e
resta-nos ainda hoje a memória benfazeja que reconforta os corações, se
soubermos cultivá-la. Alguma coisa poderemos ainda saber e revisitar da
vivência daquele tempo em que as árvores frutíferas, e especialmente o
castanheiro, habitavam próximo da cidade, eram populares, coloriam o convívio
frutuoso e amparavam o sustento de todos os dias, das classes ociosas e
laboriosas.
Desterrando ausências, em
boa hora nos surge esta Antologia como um cultivado compromisso com a boa
memória e um prestante refazimento daquele convívio frutuoso que deixou
reminiscências na voz do povo, e na alma dos artistas e poetas. É uma
publicação que mobiliza a criação artística; promove um verdadeiro florilégio de
escritores; prestigia o organizador e responsável autoral e enriquece as letras
portuguesas.
Vem dar sequência ("gloriose finis
coronat opus"), a um conjunto bem composto de livros, publicados ao longo
dos últimos vinte anos, elaborados e editados por Jorge Lage, com raro esmero e
louvável devoção cultural militante e otimista. Neles se encontra notícia
copiosa, e a mais abragente até agora recolhida em Portugal, sobre a castanha.
É uma série bibliográfica despretensiosa, mas muito apelativa, com pesquisada
informação sobre o trânsito produtivo, sobre o consumo e a fortuna culinária,
sobre as artes, as tradições, e tudo o mais que a inventiva dos nossos
antepassados foi acumulando e que Jorge Lage, com infatigável curiosidade,
descobriu e deslindou na arca da memória, no estudo, na indagação etnográfica e
na observação de campo. Toda essa herança foi por ele retomada com diligência e
critério, e podemos agora apreciá-la, não só como legado cultural — Quem me
dera cá o tempo..., mas também como um património histórico e como indicador de
civilização que se prolonga na criatividade e na elaboração poética selecionada
nesta Antologia da Maria Castanha.
Este volume é uma
celebração literária afetuosa e quase outonal; faustosa e seleta pela
colaboração agenciada; e finalmente, gloriosa e de suave nostalgia pela
evocação desse fruto de referência fascinante na história da alimentação
humana. Repercute e prolonga uma ancestral memória de mais de dois mil anos de
referência escrita, com um sabor literário que vale a pena recordar.
2. A castanha enche a mão
duma criança, é um "pomo" de beleza rara e singular, surpreendente
pelas múltiplas aparências no percurso da sua formação, desde o franjado
florido da primavera até à degustação jubilosa, na mesa ou no magusto
campestre. Protege-se com uma tríplice vestimenta: o ouriço, a casca
propriamente dita e a pele. Três véus de elaborada tessitura, bem adequados à proteção
e ao ornamento da aparência. O ouriço, áspero e hirsuto, é defesa contra os
predadores; depois vem o tegumento lenhoso que surpreende os olhos, lúbrico e
colorido entre o vermelho e negro, "ex rutilo nigrescens", num verniz
requintado e sedutor; finalmente reveste-se com um véu da intimidade, como um
último desafio para o desejo.
É consensual, entre a
sabedora sociedade dos amantes da boa mesa, que as castanhas têm uma poderosa
mensagem gustativa e, por isso, têm registo privilegiado em toda a literatura
gastronómica desde a Roma antiga, sobretudo como base ou acompanhamento de
outras iguarias. Encontra-se uma receita de castanhas num livro das artes da
cozinha, escrito há cerca de 2.000 anos. É o primeiro tratado de culinária
conhecido, na memória bibliográfica ocidental: De re coquinaria,
tradicionalmente atribuído a Marcus Gravius Apicius, que floresceu sendo
Tibério imperador (14-37).
Entretanto, os manuais de cozinha, a partir do séc. XVI, foram acrescentando muitas outras receitas. Jorge Lage, o grande tratadista dos múltiplos distritos temáticos da castanha, coligiu e publicou várias centenas de receitas que promovem a castanha como uma das mais importantes referências da história da alimentação no mundo ocidental.
(Continua)
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