27 de Janeiro de 2019
Da Justiça, vem uma ideia de favoritismo
e parcialidade. É inegável a imagem de vulnerabilidade da Justiça, que se
traduz em fraqueza dos cidadãos.
É indelével a sensação de que algo na Justiça não está a correr bem e de
que se preparam grandes acções. Ou reviravoltas. Não se esconde a ideia de que
a Justiça pode ser fonte de surpresas a breve prazo. É uma questão inescapável:
estará em curso um movimento de revisão dos grandes processos pendentes?
É uma hipótese com fundamento: será que nos devemos preparar para más
notícias no domínio dos casos em que são visados os poderosos? Nos últimos
meses, houve mudanças muito importantes no universo da Justiça, designadamente
nos tribunais superiores e em alguns departamentos vocacionados para estes processos.
Tem havido substituições, algumas aparentemente de rotina, na Procuradoria-Geral da República, no
Conselho Superior de Magistratura, no Conselho Superior de Magistratura do
Ministério Público e no Supremo Tribunal de Justiça. O que também se verifica
entre os dirigentes das polícias de investigação.
Coincidindo com estas mudanças, há sinais inquietantes: o número de
arguidos diminui; o número de acusações decresce; há arguidos que deixam de o
ser; há penas que são reduzidas; por alegada falta de consistência de provas
indícios, caem acusações. Devagar, como quem não quer a coisa, algo se passa.
Ora, estão em curso processos de extrema gravidade e de excepcional
importância. Está em causa a honra de dezenas de figuras notáveis. Dezenas de
políticos, incluindo primeiro-ministro, ministros,
secretários de Estado, deputados e autarcas de vários partidos estão
profundamente envolvidos. Muitos dirigentes económicos e financeiros, talvez
alguns dos mais poderosos banqueiros portugueses, além de bancários,
empresários e gestores também se encontram visados. Contam-se ainda dirigentes
de algumas das mais importantes empresas portuguesas públicas e privadas, sendo
que umas tantas foram objecto de destruição deliberada e roubo. A este elenco,
acrescentam-se militares e polícias de todas as patentes, assim como dirigentes
dos mais poderosos clubes de futebol. Nunca nada de parecido se viu na
história.
Movimentos quase imperceptíveis, aparentemente de pouca importância,
alteram os comportamentos dos Conselhos Superiores, do Ministério Público, dos
Tribunais, das associações de magistrados e outros profissionais da Justiça.
Uma nomeação aqui e outra ali. Uma substituição sem motivo evidente e outra em
resultado de ciclos e de escalas. Processos que se atrasam sem razão, outros
que aceleram de modo imprevisível. Há uma espécie de erosão nas acusações, nas
suspeitas e nas pronúncias. No universo da corrupção, do peculato, do
favoritismo, do branqueamento de capitais, da prevaricação, do segredo de
justiça, da fuga de informação, da legislação feita por encomenda e dos
contratos entre o público e o privado, os processos são objecto de atraso, de
esquecimento, de dificuldades imprevistas, de investigação alegadamente mal
feita, de acusação não fundamentada, de gravações desaparecidas e de escutas mandadas
destruir. Que se passa? Má investigação? Má acusação? Má instrução? Vingança
pessoal? Envolvimento partidário? Mudança de sentido político no seio do
Ministério Público? Tentativa de recuperação por parte dos principais arguidos
da política, da banca e dos negócios? Que se passou na destruição de provas e
de escutas? A política de “bica aberta” relativamente às provas e às escutas
tem explicação? A publicação, a ocultação e a destruição de escutas continuam a
ser suspeitas.
A recente polémica a propósito da tentativa frustrada de alteração da composição do
Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público teve o
efeito de revelar o jogo de tensões e pressões no interior e à volta dos
grandes corpos de profissionais da Justiça. Quase coincidindo, no tempo, com
esta discussão, a substituição da procuradora-geral da República, a mudança
do juiz de instrução do caso da Operação Marquês e
alegadas anomalias na distribuição de processos confirmaram a existência de
sérios confrontos institucionais.
Nos processos dos políticos e do dinheiro, a justiça tem
dificuldade em resolver.
Há quem atrase e deixe prescrever. Ou oculte evidência e provas. Da
Justiça, vem uma ideia de favoritismo e parcialidade. É inegável a imagem de
vulnerabilidade da Justiça, que se traduz em fraqueza dos cidadãos. Ora, o que
acontece é simultâneo com alguns progressos.
A Justiça melhora os seus meios, progride na sua administração quotidiana e
na profissionalização, mas parece estancar diante das rivalidades entre os seus
corpos mais importantes, magistrados, procuradores, oficiais, advogados e
polícias.
A Justiça moderniza-se, aumenta a eficácia, diminui as pendências, aumenta
a produtividade e recorre a especialistas, mas parece estancar diante dos
processos que envolvem governantes, políticos, poderosos das finanças e das
empresas e altos funcionários da Administração Pública.
A Justiça afirma gradualmente a sua independência, mas constrói uma
autogestão orgulhosa que intimida e paralisa o legislador e que a afasta do
povo soberano e das fontes de legitimidade democrática.
A Justiça reclama a sua isenção, mas mostra-se vulnerável às pressões e
lutas em que intervém interesses secretos e discretos, religiosos e laicos,
económicos e financeiros, partidários e corporativos.
A Justiça proclama a sua distância aos interesses do dia, às lutas de
corpos e de classes, aos grupos e associações, mas organiza sindicatos e
similares, ameaça e leva a cabo greves e reivindicações tanto profissionais
como políticas.
A Justiça exige garantias e condições de investigação e julgamento, defende
o recato e protege as suas prerrogativas de trabalho, mas aceita ou estimula o
mais fétido clima de fugas de informação e de falhas deliberadas de segredo de
justiça.
A Justiça invoca um alto espírito de respeito pelo Direito, pela Lei e pelo
Processo, no que tem seguramente razão, mas utiliza métodos duvidosos e
privilegia as escutas que valida ou elimina com intenções estranhas.
A Justiça portuguesa teve dificuldade em adaptar-se à democracia, aos
tempos modernos, à Europa, aos Tribunais europeus, ao digital, ao capitalismo e
à sociedade de informação.
A Justiça tem como missão dirimir conflitos e defender as liberdades e os
direitos humanos. E escorar a democracia. Esta, sem justiça, fica entregue aos
clãs e às tribos.
Sociólogo
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