Se, conforme proclama
o Indicador Supremo da Felicidade, os portugueses gastaram mais dinheiro no
Natal, não é virtude de Costa, mas defeito dos portugueses. E todos sabem que
não nos restam muitos.
Foi a 1 de Abril de
2017, salvo o erro, que recebi o telefonema do sujeito. Eu estava no aeroporto
de Orlando, a ver uma pequena tempestade cancelar sucessivos voos para Nova
Iorque, e conhecia o sujeito de nome. Dias antes, o sujeito chegara a director,
sob ordens do director de facto, da revista para a qual eu escrevia há 13 anos.
O telefonema começou com cumprimentos efusivos e terminou, um minuto depois,
com o meu afastamento da tal revista. Por isto e por aquilo, não fiquei
espantado, ou demasiado aborrecido. Além de ser escusado, não me ocorreu
queixar-me, ou questionar o direito de empregadores, sejam proprietários ou
capatazes, despacharem empregados, sejam avençados ou “fixos”. Apenas me
ocorreu responder ao funcionário da Delta Airlines que entretanto me chamara e,
finalmente, apanhar um avião. Houve nuvens negras durante toda a viagem, mas
pairavam lá em baixo. Não voltei a pensar no sujeito, e só ocasionalmente
voltei a pensar nas consequências do meu breve contacto com ele. A vida, ou lá
o que é, continua.
E continuou até 27 de
Dezembro de 2018, quando pela primeira vez o Facebook me mostrou a ligação para
um artigo do sujeito, publicado nesse dia no site da referida revista. Segui a
ligação. Li o artigo. Cito pedaços: “António Costa vai entrar em 2019 com
condições políticas invejáveis. Pode ser um ano de sonho. Termina a legislatura
com uma popularidade imbatível, pode ganhar as eleições com maioria absoluta
ou, no cenário menos bom, escolher o parceiro que quiser para uma nova
geringonça.”; “A economia permanece numa trajectória de recuperação e os
portugueses, como se tem visto nesta quadra natalícia, andam tão felizes nas
compras que não nutrem qualquer simpatia pelas profissões que protestam por via
da greve”; “(…) a já lendária lucidez de António Costa (…)”. O artigo, cuja
parte disponível citei quase na íntegra, não terminava aqui: o resto era
reservado a assinantes, coisa que não sou.
Sou, porém, um
maluquinho por contemplar as figuras a que alguns se prestam para ganhar o pão
de cada dia. Pelo que decidi procurar artigos anteriores do sujeito, que jamais
lera. Valeu a pena, e vale a pena insistir nas citações: “António Costa vai
acelerar para o seu grande objectivo que é ganhar com maioria absoluta. Por
isso, fez uma operação de remodelação e gestão política quase perfeita.”;
“Costa afinou a máquina e ela promete ser diabólica na corrida até à meta.
Remodelou a tempo para ganhar a sério.”; “(…) o pragmatismo e instinto político
de António Costa (…)”; “Os bons resultados da geringonça são de António Costa e
do PS”; “A vida de António Costa está cada vez mais fácil. O primeiro-ministro
é o pêndulo essencial da política de alianças governativas à esquerda e à
direita (…)”; “O primeiro-ministro sabe que, acidentes de percurso à parte, (…)
o vento sopra a seu favor. Os portugueses já acabaram 2017 com mais dinheiro no
bolso – que bem se viu nas compras de Natal – e vão continuar esse efeito em
2018.”; “Costa cometeu uns erros, disse uns disparates!? É certo que não foi um
exemplo de sensibilidade política e social, em certos momentos. Mas é o
timoneiro, tem uma enorme popularidade e é reconhecido como o homem certo no
lugar certo. Enquanto as contas andarem bem, ninguém o derruba do poleiro. (…)
Nas contas, não há político mais realista do que ele…”. Etc. Etc. Etc.
Não identifico o
sujeito porque não é preciso e porque não quero personalizar um “estilo” que,
na pobreza da linguagem e na curvatura das vértebras, é afinal colectivo e
praticamente o padrão-ouro dos comentadores pátrios. O facto de dormirem
sossegados é um rombo na indústria dos ansiolíticos. A fim de simular isenção,
salpicam pelos comentários críticas a ministros fugazes, lamentam determinadas
decisões governamentais ou a falta delas, desancam no “eng.” Sócrates sempre
que as directivas mandam, brincam com o ocasional (e raríssimo e humano e
perdoável) “deslize” do primeiro-ministro para legitimar (eles, coitados, dizem
“credibilizar”) o resultado pretendido: a descarada propaganda do dr. Costa e
dos poderes que o dr. Costa representa. É fascinante a jovialidade com que se
eleva a um estatuto próximo do génio político alguém que, sob qualquer
perspectiva, não passa de uma irrelevância manhosa. Removido o verniz que os
seus bajuladores inventaram, quem é o dr. Costa? No máximo, um veterano da
pequena intriga partidária, um especialista em tropeçar na verdade e na
gramática, um videirinho descarado, um rústico sem noção, o chefe oportuno de
um bando repulsivo à vista e à decência. Ou, na ponderada definição dos
devotos, “o timoneiro”.
Diga-se que o estado
da nação é exactamente o que se esperaria após três anos nas mãos de um
timoneiro assim, e o contraponto (tosse prolongada) de uma oposição assado. A
bancarrota, já uma tradição popular, volta a espreitar. Estradas, hospitais,
justiça, instituições, fronteiras, soberanias desmantelam-se a céu aberto.
A forma do debate público raia a demência, e o conteúdo fintou a demência há tempos. As clientelas empanturram-se. As trapaças sucedem-se. O fisco sufoca tudo. Protestos de duas dúzias são ameaçados por jagunços e vigiados por batalhões. Fanáticos e burlões sobem a “personalidades”. O ranço veste-se de progresso. Os vestígios da civilidade fugiram apavorados. E este retrato de uma agonia certa é retocado pelos “media” de serviço de modo a assemelhar-se a um caso de sucesso (juro). Numa imitação fiel da lengalenga oficial e oficiosa, também nos “media” a mentira deixou de ser um recurso para se tornar o processo. Uns e outros presumem a profunda idiotia dos cidadãos. E a maioria dos cidadãos, alheia ao colapso do país e da Europa que segura o país, tende a dar-lhes razão.
A forma do debate público raia a demência, e o conteúdo fintou a demência há tempos. As clientelas empanturram-se. As trapaças sucedem-se. O fisco sufoca tudo. Protestos de duas dúzias são ameaçados por jagunços e vigiados por batalhões. Fanáticos e burlões sobem a “personalidades”. O ranço veste-se de progresso. Os vestígios da civilidade fugiram apavorados. E este retrato de uma agonia certa é retocado pelos “media” de serviço de modo a assemelhar-se a um caso de sucesso (juro). Numa imitação fiel da lengalenga oficial e oficiosa, também nos “media” a mentira deixou de ser um recurso para se tornar o processo. Uns e outros presumem a profunda idiotia dos cidadãos. E a maioria dos cidadãos, alheia ao colapso do país e da Europa que segura o país, tende a dar-lhes razão.
Se, conforme proclama
o Indicador Supremo da Felicidade, os portugueses gastaram mais dinheiro no
Natal, não é virtude de Costa, mas defeito dos portugueses. E um suspiro: todos
sabem que não nos restam muitos, embora ninguém queira saber. Enquanto lá fora
as “fake news” são uma praga, aqui são um bálsamo. Tenho saudades de
aeroportos.
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