quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Peso da reestruturação


João César das Neves – Diário de Noticias (15/12/2016)

"Reestruturação da dívida" é uma expressão hoje recorrente nas análises políticas. O Bloco de Esquerda há muito se destacou nessa exigência, mas crescentemente acompanhado por entidades de vários quadrantes. Os sucessivos governos insistem que tal não será necessário, prometendo há quatro orçamentos que a dívida descerá no ano seguinte, mas a ameaça persiste. Porquê, e o que há a fazer?
A razão da insistência é que o endividamento do Estado não só é altíssimo e continua a crescer como está mesmo a acelerar. Desde que o governo tomou posse, em 26 de Novembro de 2015, a dívida já aumentou 14 mil milhões de euros, mais do que tudo o que o Estado teve de pagar à banca de 2008 a 2014. E isto refere-se apenas ao Estado, omitindo municípios, Segurança Social, etc.
Algumas comparações simples revelam a situação. Desde que o engenheiro Sócrates chegou ao poder, em Março de 2005, até o Lehman Brothers falir em Setembro de 2008, deflagrando a crise internacional, a nossa dívida directa do Estado aumentou em média 18 milhões de euros por dia, todos os dias, incluindo domingos e feriados. Da falência do Lehman Brothers à chegada da troika, em Abril de 2011, acelerou para 40 milhões por dia. Durante o período da troika, de Maio de 2011 a Junho de 2014, no auge da crise, subiu para 50 milhões por dia. A seguir, e até à chegada de António Costa, a dívida regressou ao ritmo de inicial, crescendo 19 milhões por dia. Desde que Costa tomou o poder até ao fim de Setembro, acelerou para 51 milhões por dia; em Outubro houve uma descida e essa média diária caiu, mas ainda para 42 milhões por dia, a segunda taxa mais elevada dos últimos dez anos.
Isto, aliás, explica o mistério que surpreende tanta gente: como pode o governo cumprir promessas e reduzir o défice? O truque é registar gastos directamente na dívida, sem passar pelo Orçamento. Só assim se explica que o endividamento esteja a aumentar quase tanto como nos anos de crise, apesar do défice parecer um terço da média de então.
A isto junta-se o facto de Portugal ser o país do mundo mais sobrecarregado com juros. Segundo o FMI, o nosso país em 2015 tinha uma dívida pública de 129% do PIB, o que entre os países desenvolvidos apenas era ultrapassado pelo Japão (248%), Grécia (178%), e Itália (133%). Mas, segundo a UE, pagamos de juros 4,6% do PIB, enquanto a Itália paga 4,2%, a Grécia 3,8% e o Japão 2%. Com valores destes, e por melhores que sejam as intenções políticas, a conclusão só pode ser que a nossa dívida pública é insustentável. Daí que, por mais que se prometa o contrário, a reestruturação continua na ordem do dia. Mas será isso a panaceia que tantos apregoam? Antes de enveredar por aí, é bom acertar algumas ideias básicas.
Primeiro, uma reestruturação da dívida pública não é um almoço grátis para o Estado, como asseguram tantos dos seus apoiantes. Quando um país renega os seus compromissos, alivia as despesas, mas sofre uma grave perda de credibilidade. Isso irá refletir-se em acrescidos custos de financiamento durante bastante tempo. É por isso, e não por razões ideológicas ou políticas, que os governos resistem tanto a essa opção.
Em segundo lugar, uma reestruturação da dívida só se faz de surpresa, e nunca pode ser anunciada. Se o Estado disser antecipadamente que renegociará com os credores, os mercados fecham, porque só um doido empresta a alguém que avisa que não pagará. Assim, as insistências do Bloco só mostram tolice e irresponsabilidade.
O pior, porém, são os custos directos. Se Portugal não cumprir os seus pagamentos financeiros alguém perde as poupanças. Os que defendem a reestruturação assumem implicitamente que os credores que sofrem são capitalistas ricaços, boa parte deles estrangeiros, a quem não se deve dar muita atenção. Mas vão ter uma amarga surpresa, porque a coisa explodirá bem perto de casa, senão mesmo dentro dela. BCE e FMI, credores privilegiados, nunca serão prejudicados, e muitos dos ricaços alemães já se afastaram ou protegeram. Serão as famílias portuguesas que confiaram na honorabilidade do Estado, ou depositaram as suas poupanças em bancos que detêm dívida pública, a ser gravemente afectadas. Teremos uma nova saga do papel comercial do BES, desta vez com títulos do Tesouro. A política que há tantos anos o Bloco de Esquerda apresenta como a solução mágica irá atingir aqueles mesmos que ele diz querer proteger.
A nossa dívida pública está num nível insuportável e segue um caminho irresponsável. Assim, o que quer que façamos, seremos nós a sofrer com isso.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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