Francisco Assis - jornal Público
É preciso promover à escala europeia o
reencontro entre o melhor do liberalismo e o melhor da social-democracia.
Nicolas Baverez, conceituado economista e
ensaísta de pendor liberal, autor de uma preciosa biografia de Raymond Aron,
publicou numa das mais recentes edições do jornal diário de referência da
direita francesa – Le Figaro – um artigo assaz interessante que merece ser
objecto de reflexão. O tema consiste no conflito que presentemente opõe a
Comissão Europeia à empresa norte-americana Apple e ao Governo irlandês. Aquele
que é uma autêntica bête noire da esquerda anti-capitalista saúda com
entusiasmo a posição da Comissão Europeia e deplora veementemente as atitudes
assumidas quer pela Apple, quer pelo Estado irlandês. Fá-lo em nome de uma
visão exigente dos princípios liberais.
Recordemos sucintamente os factos em
causa. A Comissária Europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, curiosamente
ela própria oriunda da família política liberal, considerou que o valor ínfimo
(0,005%) de taxação fiscal aplicado pelo Estado irlandês à Apple configurava
uma indevida e ilegal ajuda de Estado violando, assim, o princípio da
concorrência. Na sequência dessa posição a Comissão decidiu obrigar a empresa a
pagar treze mil milhões de euros à Irlanda. Este valor corresponderá ao valor
do imposto que ao longo de vários anos o Estado irlandês terá indevidamente
“perdoado“ a uma das mais lucrativas empresas do mundo. As reacções negativas
não se fizeram esperar juntando num autêntico coro as vozes do Presidente da
Apple, do Secretário norte-americano do Tesouro e de um porta-voz de Executivo
de Dublin. A Comissária Europeia, contudo, não se deixou intimidar lembrando,
sobretudo aos norte-americanos, que ainda recentemente tinham sido tomadas
medidas de natureza idêntica visando uma grande empresa europeia, a Fiat.
O que está em causa da parte do Estado
irlandês não é o valor do imposto aplicado a pessoas colectivas (12,5 %), mas
sim os acordos estabelecidos especificamente com algumas empresas
multinacionais americanas que acabam por transformar aquele país numa autêntica
praça financeira offshore. O comportamento do Governo irlandês neste domínio
produz ainda o efeito de prejudicar directamente as finanças públicas dos
outros Estados-membros, já que se vêem impossibilitados de arrecadar receita fiscal
inerente à actividade comercial levada a cabo por estes grupos económicos. No
caso específico da Apple o valor em causa já terá sido calculado, será
brevemente publicado e deverá ser transferido para cada país deduzindo aos
treze mil milhões de euros que a Irlanda deverá receber desta empresa.
Há várias ilações a retirar quer deste
episódio em si mesmo, quer do texto já citado de Nicolas Baverez. Comecemos
pelas ilações negativas: algumas das mais importantes e inovadoras empresas do
mundo aproveitam-se do processo de globalização em curso para, de uma forma
arrogante e anti-social, se procurarem eximir ao cumprimento dos seus mais
elementares deveres fiscais; há países europeus, habitualmente muito
enaltecidos por liberais de pacotilha, que optam por uma política tributária
própria de uma zona offshore com o intuito de empolarem artificialmente o
crescimento económico e assegurarem a criação de algum emprego, por definição
muito volátil e sob permanente estado de chantagem. Já as ilações positivas têm
que ver com a atitude assumida pela Comissão Europeia e pela progressiva tomada
de consciência das várias famílias políticas europeias quanto à necessidade de
pôr cobro a situações desta natureza. Para isso tem contribuído fortemente a
pressão de uma opinião pública cada vez mais informada a respeito destes
assuntos. Uma outra ilação muito positiva consiste na constatação de que ainda
há espíritos eminentemente liberais preocupados com a boa regulação do mercado
interno europeu e com uma correcta ordenação normativa da globalização
económica e financeira. No seu texto Baverez contesta as práticas de dumping
prosseguidas por vários países no âmbito das relações comerciais
internacionais, preconiza um maior intervencionismo europeu nesse campo, usa
com propriedade o conceito de soberania separando-o de qualquer forma de
exaltação nacionalista e faz a apologia do Direito como condição imprescindível
ao correcto funcionamento das economias de mercado.
Assistimos hoje em quase todo o mundo
ocidental ao ressurgimento de um discurso político anti-liberal,
proteccionista, nacionalista e neocorporativo. Para a extrema-esquerda, para a
extrema-direita e para alguns sectores que até há pouco tempo se integravam nos
espaços quer da esquerda, quer da direita liberais e democráticas, este parece
ser o único antídoto possível a uma globalização desregulada. Claro que uns
adoptam este discurso por convicção e outros apenas por decepção. Daí a
importância de lembrar que há um outro caminho de carácter liberal, democrático
e social. Nicolas Baverez enunciou uma parte desse caminho, aquele que tem a
ver com a importância das normas e dos procedimentos para a organização do
mercado. O contributo histórico da social-democracia foi o de acrescentar a
essas normas algumas outras de carácter especificamente social a fim de
garantir o máximo de igualdade possível no respeito pelo valor superior da
liberdade. É esse reencontro entre o melhor do liberalismo e o melhor da
social-democracia que é preciso promover à escala europeia. Tudo o resto
significará apenas regressão civilizacional.
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