Alberto
Gonçalves – Diário de Noticias
De
repente, não imagino porquê, boa parte dos meus amigos do Facebook desataram a
discutir a criação de um partido liberal. Quase de certeza, estão a brincar.
Dado que não são de esquerda, possuem por definição a lucidez suficiente para
perceber que a ausência de um partido liberal indígena se deve a um motivo
assaz trivial: não há público. Ou há o público necessário para que a comissão
política, o conselho nacional, os participantes nas arruadas e os eleitores do
hipotético PL se possam deslocar no mesmo autocarro - e ainda oferecer boleia a
dois transeuntes particularmente afectados pela subida dos combustíveis. É a
simples lei da oferta e da procura, que os liberais, mais do que os outros,
compreendem.
Por
cá, as convicções políticas dividem os cidadãos em três grupos principais: os
que mandam no Estado, os que vivem ou sobrevivem à custa do Estado e os que
gostariam de pertencer ao primeiro grupo ou, no mínimo, ao segundo. Uma longa
tradição de pobreza, material e de espírito, impede os portugueses de
experimentarem qualquer vestígio de simpatia pela liberdade, conceito que de
resto lhes é tão estranho quanto o frio para um habitante do Iucatão. Entre
nós, a liberdade é um penduricalho que fica impecável em discursos épicos e
cançonetas medonhas. No mundo real, é coisa impensável. Onde já se viu que um
indivíduo possa tentar determinar o próprio destino sem trela nem amparo?
Não
é à toa que o nosso quadro partidário percorre todo o espectro ideológico de A
a B, leia--se do mal dissimulado socialismo da ridiculamente chamada direita ao
socialismo orgulhoso da espantosa esquerda, que inclui, sem destoar, seitas
leninistas e estalinistas, admiradores da Coreia do Norte e promotores de merchandising
do Che. Um governo que aumenta descaradamente os impostos, mantém a máquina
pública essencialmente intacta e não enfia o país na bancarrota em seis meses
já é "neoliberal" e um perigoso lacaio dos mercados. A alternativa, o
saque fiscal a benefício das clientelas, "investimento" público,
corrupção escancarada e desastre iminente é o padrão aceite pela generalidade
da opinião pública e publicada. E tende a piorar. Para regressar às graças do
povo, o CDS entregou-se a uma adversária da iniciativa privada. O PSD busca
popularidade através de declarações apaixonadas à social-democracia. E o PS
resiste no poder com típica brutalidade e um renovado amor pelo marxismo. No
desgraçado Portugal destes dias, o PCP propõe taxar os "ricos" a 75%
e ninguém se dá ao luxo de achar a proposta uma alucinação divertida, como a
cientologia ou o criacionismo: a loucura tornou-se mesmo plausível. E com
frequência desejável.
E
é isto. Dos "trabalhadores" aos "empresários", uma
desmesurada parcela da população enfiou na cabeça o direito de ser sustentada
pelos "ricos", ou pela Europa, ou pelos meros contribuintes. E o
papel do Estado consiste, na metade do tempo, em zelar para que assim aconteça.
Na metade que sobra, cabe ao Estado decretar comportamentos, na medida em que
irresponsáveis económicos padecem igualmente de irresponsabilidade cívica.
Neste rectângulo repleto de crianças crescidas, não faltam fumadores
entusiasmados com medidas antitabágicas. É aqui que o liberalismo conta
prosperar? Boa sorte.
Por
mim, e por pura curiosidade, aceito convites para um almoço conspirativo do PL,
mas julgo que basta reservar a mesa do canto. A menos que eu esteja enganado.
Espero estar enganado.
Sábado,
20 de Fevereiro
Ameaças
globais
Desde
2006 que passo pelo menos uma ou duas semanas por ano na América. Gosto das
possibilidades de Nova Iorque, da música nas ruas de Nova Orleães, Nashville e
certos lugarejos do Mississippi, das estradas do Novo México, das paisagens do
Arizona e do Utah, dos desertos da Califórnia e do Nevada, da comida dos texanos
e da simpatia de estranhos.
E
se há na América coisas de que não gosto, não chegam para me remover a
impressão, não sei se fundamentada, de que um dia ficarei por lá de vez. O
redundante travo "europeu" da Nova Inglaterra é largamente compensado
por um pequeno-almoço numa espelunca do Tennessee. A aridez imperial de
Washington é esquecida a cada conversa com amigos feitos há meia hora num café
de Albuquerque. A melancólica padronização da main street nas pequenas cidades
não apaga a absurda exuberância do Monument Valley. A desagradável ênfase nas
questões raciais não mancha o improvável sucesso daquele caldo cultural.
Sobretudo a repugnante obsessão com a ideia de celebridade não impede a América
de ser o lugar mais conveniente ao voluntário e abençoado isolamento.
Por
tudo isto, tenho evitado escrever, ou sequer pensar, nas próximas eleições
presidenciais. Os candidatos "tradicionais" de ambos os partidos,
fossem Rubio ou Cruz, fosse Hillary, eram deprimentes quanto baste. Os
candidatos "surpresa" são outra coisa completamente diferente.
Enquanto sociedade, o grande mérito da América tem sido a capacidade de
enfraquecer os diversos radicalismos em prol de uma alternativa civilizacional
eficaz. É um lugar de equilíbrios, que sempre reagiu às rupturas sociais com
decência e rapidez. A orientação para o "centro", com os inúmeros
defeitos deste, poupou a América a arrebatamentos totalitários. Hoje, por
razões que não cabem aqui, os senhores Trump e Sanders elegeram o "centro"
como o inimigo. Se os americanos elegerem um deles, a América que conhecemos
está em risco. E o mundo, pelo menos o meu, também.
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