Ontem aconteceram dois momentos
políticos, para os quais 95% dos portugueses se estiveram “borrifando”: a moção
de confiança ao Governo, e a auditoria à ministra das finanças pela comissão de
inquérito parlamentar. Mas já lá vamos; importa reter, ainda que
sinteticamente, outras questões.
O governo de Pedro Passos Coelho
arrecadou uma herança que lhe tem dificultado as reformas, na medida em que as
terapias (ajustamentos) causam sempre resistências na sociedade. Não dizemos
nada de novo; isto já havia sido observado pelos grandes sábios da Antiguidade
Clássica. As resistências criam-se, sobretudo, na Administração. Porque alguns ciclos
governativos não resistem a apadrinhar os “seus”, colocando aqui e ali o
sobrinho, o primo, o tio, a sogra, o cunhado, o primo do cunhado, a prima da
sogra, o amigo do primo do cunhado, a amiga da amiga da prima da sogra, e por
aí adiante. É pois notório que a corrupção não tarda. E o governo de Pedro
Passos Coelho recebeu essa herança, não a criou.
No texto de Lessing (a que já
fizemos referência), de 1778,
a determinado “grupo” de homens são chamados aqueles
“com aptidão necessária”. Isto transposto para a governação e para a
Administração, como muitas vezes acontece, traz as tais lacunas que, de vez em
quando, leva os países à bancarrota, principalmente os pequenos, com uma
economia fraca. Foi o caso de Portugal. E isto porquê? Porque ao exigir-se apenas
a “aptidão necessária” (sobretudo nas chefias), a maior parte das vezes opta-se
naturalmente por quem tem condições financeiras e sociais mais elevadas, ou por
quem é “amigo”.
Se recuarmos no tempo, à
Antiguidade Clássica, o que verificamos? Precisamente o contrário. Poderíamos
citar um rol de textos a começar pelos de Platão, Aristóteles, Séneca, Cícero,
entre outros. Mas não. Vamos citar um (a que já fizemos referencia) que nos
parece o mais adequado e o mais deslumbrante em termos de justiça humana: O elogio fúnebre de Péricles (no qual se
fundamentou o prefácio da carta europeia).
A dado passo Péricles diz aos
seus concidadãos: “ Quando temos de recorrer às leis, verificamos que elas
conferem a todos o mesmo nível de justiça, no respeito pelas suas diferenças[1]. A
progressão na vida pública depende do mérito e das capacidades de cada um, sem
olhar à sua origem social. Do mesmo modo, se um homem possui aptidões para
servir o estado, não é a obscuridade da sua eventual pobreza que o impede de o
fazer” (Guerra do Peloponeso, 37).
A diferença que vai entre a
“aptidão necessária” e o “mérito”! Parece pequena, mas não é. Separam-nas
“anos-luz”. O individuo de mérito, à partida, não é corrupto. É o melhor. E o
serviço que desempenha não depende da sua riqueza ou da sua condição social.
Depende das suas capacidades.
Não foi isto que o actual governo
herdou. O que herdou nos lugares de chefia foi uma quantidade de gente com
“aptidão necessária”. E mesmo assim aos que a não tinham, inventou-se!
Vem então isto a propósito do que
alinhavámos no primeiro parágrafo do texto. A auditoria à ministra Maria Luís
Albuquerque, veio demonstrar que no parlamento temos uma quantidade de gente
com “aptidão necessária”, e outra quantidade com ela inventada. O que se ouviu
à ministra sugere que esta auditoria foi uma farsa; um distraimento. Quem a
promoveu está mais interessado em distrair o país do que em resolver os seus
problemas. Porque razão não foram chamados os verdadeiros responsáveis? Aqueles
que à época tutelavam o pais e as empresas?
Já noutro plano, a comunicação
feita pelo Primeiro-ministro foi do melhor que ouvimos. Mas houve, sobretudo,
um ponto do qual queremos chamar a atenção. Pela primeira vez, num discurso do
género, se ouviu a palavra “meritocracia”. No que respeita à reforma da
Administração. Vai ser difícil. Porque para isso era preciso, desde logo,
corrigir as patifarias dos dois governos anteriores do “comentador de Paris”.
Começando pelas arbitrariedades cometidas a gente de talento e mérito, e
acabando nos cargos de chefia de gente com “aptidão necessária”, nuns casos, e
inventada noutros. Mas é melhor tentar do que não fazer nada. As sementes
germinarão, mais cedo do que tarde.
Armando
Palavras
Post-scriptum
Continuam activos os grupelhos de contestação ao governo.
Ontem, na Assembleia, lá estavam, mascarados de palhaços. Uma contestação séria
segue as regras democráticas. E elas são muitas. Desde logo, exige-se a que
quem contesta respeite quem é contestado. Mas não. O objectivo não é contestar,
é ridicularizar, humilhar. Fazer aquilo que foi denunciado em bom tempo por
homens admiráveis: Soljenitsyne, Grossman ou Sakarov.
Não é para admirar. É que esses grupelhos pertencem ao grupo de vilãos
que humilharam milhões de pessoas, só porque não pensavam como eles.
A estes grupelhos dedicaremos escrito conveniente dentro de alguns dias.
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