quarta-feira, 31 de julho de 2013

A Vida e Destino, o terror e a vilania na obra de Vassili Grossman

Prisioneiros nos Gulag


As políticas genocidas na Rússia Soviética dos anos 1932-1933 e 1937-1949 estão hoje devidamente documentadas e estudadas.
Já Dostoyevsky , em Demónios, nos transporta para as origens do terrorismo moderno. Porque o conceito de “terror em massa” é fulcral em Lenine, fórmula que surge a partir da revolução de 1905. Volta a surgir em força na Primavera e durante o Verão de 1918, estando ainda presente em Abril de 1921. E largamente apoiada por intelectuais como Gorki, sobretudo no que diz respeito à massa de camponeses. Em 1930-31, foram deportados cerca de 2 milhões de camponeses. Das suas tragédias nos dá conta o historiador italiano Andrea Graziozi; desta “patologia sistémica” estalinista, pode recorrer-se ainda a Moshe Lewin ou Lynne Viola.
De repente, o terror de 1793 dos “homens do barrete frígio” é institucionalizado no dia 5 de Setembro de 1918 pelo decreto “sobre o terror vermelho”. De facto, os meses que se seguem caracterizam-se por um clima de violência estatal absolutamente novo. São 15.000 as vítimas do Outono de 1918. Ou seja, foram executados, em dois meses, três vezes mais do que o número total de executados no último século pelo terror czarista!
Nicolas Werth destaca o escabroso editorial do jornal da tcheka de Kiev: “Que o sangue jorre a rodos!”.
O aniquilamento é, sobretudo, visível na Crimeia. Cerca de 150 mil “burgueses” são executados, deportados, etc. O livro de Melgounov, comoveu a Europa Ocidental. Diz a dado passo: “ fuzilar tornou-se o início e o fim da ponderação administrativa dos comunistas”. E socialistas, acrescente-se. São mortos 500 mil cossacos. Isaac Z. Sternberg nas suas memórias denuncia este terror leninista. O terror de massas tornou-se assim, uma politica de higiene social. Na Sibéria Ocidental eliminaram-se 300 mil.
Foram pertinentes as conclusões da autora d’As Origens do Totalitarismo, sobre as leituras dos revolucionários do século XX – Marx e Darwin – e o papel decisivo que o conceito de evolução teve nas teorias bolcheviques e nazis.
Caracterizado pela obsessão da depuração o terror de massas leninista cria a via de limpeza social que Estaline empreende a partir de 1929, ano da “Grande Viragem” e dos “Amanhãs que cantam!”.


Tudo isto foi confirmado em obras literárias como Tudo Passa[1], de Vassili Grossman. Um dos seus personagens, um activista convicto, a dado passo diz: “escorraçámo-los como a um bando de gansos”. Mas noutra passagem a barbárie humilha; vai ao limite da dignidade humana: “ … eles …”filhos da puta”. E gritam-lhes: “Bebedores de sangue”! … não podemos sentar-nos à mesa desses parasitas, o filho do Kulak é asqueroso, a sua filha é pior que um piolho. Eles consideram esses camponeses como gado, como porcos. Tudo o que se relaciona com os kulaks é repugnante: primeiro a sua pessoa, depois o facto de não terem alma…Depois, eles fedem … Quando os tivermos exterminado, começará uma era feliz para o campesinato”.
Entre isto e Hitler, “venha o diabo e escolha”, como diz o povo.


Uma outra obra sua, Vida e Destino, está hoje, finalmente, disponível em língua portuguesa.
São exactamente 855 páginas de leitura complexa, traduzidas por Nina Guerra e Filipe Guerra, publicadas pela Dom Quixote. O emaranhado de personagens ligados aqui e ali à família de Aleksandra Vladimirovna, química no laboratório da fábrica de sabão de Kazan, e do cunhado, o cientista Víktor Pávlovitch (Strum), rejeitado pelos seus pares, fazem parte de uma obra épica cuja acção central se situa na batalha de Stanilegrado, “a guerra do povo …”, que irá mais tarde justificar a mortandade de (quase) 30 milhões de mortos e a instrumentalização ortodoxa de Estaline.
Descrevem-se as florestas do norte até ao rio Volga, o gabinete de Estaline; os bunkers de Stalinegrado, os cubículos dos refugiados moscovitas em Kúbiechev ou em Kazan, na frente, nas trincheiras, nos hospitais de campanha, nos campos correccionais e nos campos de concentração, no gueto, nos vagões da morte, dentro da câmara de gás, nos laboratórios científicos de Moscovo.
Os personagens, nesta caminhada de incertezas, reencontram-se com o seu próprio passado. Muitos deles existem apenas; deixam de viver. São executados como se de animais se tratasse.
É um retrato arrepiante da condição humana desses tempos: a descrição desumana dos massacres, a morte de Sófia e do pequeno David, de mãos dadas na câmara de gás, ou a imagem de Liudmila, de alma arrasada e sangrando de dor sobre a campa de Tólia, seu filho.
Em Vida e Destino, Grossman, além de denunciar as atrocidades nazis, manifesta um profundo desencantamento com as lideranças soviéticas desde a revolução de 1917, denunciando os pogrom. Anna Semiónovna, foi uma das vítimas dos pogrom e Evguénia Nikoláevna, perseguida devido às posições políticas do seu marido. Víktor, assistiu à progressão do medo e do sistema vil da denúncia em nome da “confiança do partido”. E procurou guiar-se e “agir segundo a sua consciência”, o melhor que foi dado ao ser humano.
O livro de Grossman é profundo como A Condição Humana e Eichmann em Jerusalém, minucioso como Guerra e Paz (com o qual, aliás, tem sido comparado), e sobretudo, um testemunho de denúncia como os livros de Primo Levi.
É um dos maiores testemunhos literários sobre o totalitarismo no século XX; uma página negra da Humanidade.



Vassili Grossman nasceu na cidade de Berdítchev, a “capital judia” da Ucrânia, no ano de 1905. Filho de judeus, o pai era engenheiro e a mãe professora. Embora tenha estudado engenharia, Vassili acabou por se tornar jornalista e escritor.
Como correspondente do jornal militar russo Krasnaya Zvezda, cobriu as batalhas de Moscovo, Stalinegrado, Kursk e Berlim. Será um dos primeiros repórteres a testemunhar a libertação dos campos de extermínio de Treblinka e Majdanek. E o seu artigo “O Inferno de Treblinka” servirá de prova nos julgamentos de Nuremberga.
A pedido do governo soviético inicia a escrita do livro negro sobre a perseguição dos judeus soviéticos. Mas é uma patranha, Estaline detecta quão subversivo será esse testemunho! Em 1961, os agentes do KGB assaltam-lhe a casa levando-lhe todas as anotações que possuía para Vida e Destino. Politburo, um líder ideológico, disse-lhe mesmo que aquele romance não veria a luz do dia nos três séculos seguintes. Grossman morre em 1964, em Moscovo, vítima de cancro. Em 1974 um dos originais que sobreviveu é microfilmado pelo poeta Semion Lípkin e através do físico nuclear Andrei Sákarov e do humurista Vladimir Voinovich, esse manuscrito sai do país para ser editado em vários países em 1980. Em 1988 é publicado na Rússia de Gorbatchev.
Armando Palavras


Campos de prisioneiros


Post-scriptum
A grande obra de denúncia sobre o terror soviético foi o Arquipélago de Gulag, de Alexander Soljenitsyne. Os gulags eram campos de concentração e de trabalho forçado na antiga União Soviética. A obra de Soljenitsyne é uma narrativa sobre factos presenciados pelo autor, prisioneiro durante onze anos, em Kolima, num dos campos do arquipélago, e pelas cartas e relatos de 237 pessoas. Os factos ocorreram de 1918 (ano do nascimento do autor), até 1956. E Soljenitsyne, além de ter escrito uma obra literária notável, teve o grande mérito de ter denunciado o trabalho escravo dos campos por onde passaram mais de 18 milhões de pessoas. Dessas, cerca de 6 milhões sofreram o degredo; desterradas para os desertos cazaques e florestas siberianas.
Escrito entre 1958 a 1967, a obra foi publicada no Ocidente no ano de 1973 e circulou clandestinamente na União Soviética, numa versão minúscula, escondida, até à sua publicação oficial no ano de 1989.
O Gulag aparece na Rússia czarista, com os campos de trabalho. Após a Revolução Russa (1917), assumiu uma forma completamente diferente. Tornou-se parte integral do sistema soviético. Em 1921, já havia 84 campos de concentração em 43 províncias. E não parou de crescer. Expandiu-se durante a Segunda Guerra Mundial e atingiu o seu apogeu no inicio dos anos 50. Nessa altura, os campos desempenhavam um papel decisivo na economia soviética. Deles provinha um terço do ouro do país, bem como carvão e madeira. Surgiram, aproximadamente, 476 complexos distintos de campos, onde os presos trabalhavam em quase todas as actividades, em condições absolutamente desumanas como é descrito tanto na obra de Soljenitsyne, como na de Grossman. Iam para os Gulags principalmente os exilados políticos; os que não convinham ao sistema Leninista e Estalinista.
Em 1973, O Arquipélago Gulag converteu muitos intelectuais marxistas/leninistas, sobretudo na França, em anti-soviéticos.

Sobre o assunto, pode consultar-se os seguintes sites:



[1] GROSSMAN, Vassili, Tout passe, Julliard-L’Âge d’homme, Paris, 1984.

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