segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A austeridade aos olhos de alguns escritores transmontanos



A iminência da bancarrota provocada pelo desgoverno da I República, a principal causa do atraso do país, deu origem a uma Ditadura Militar. E por consequência, a que o Doutor Oliveira Salazar, a cinco de Julho de 1932, se tornasse no primeiro civil a chefiar um governo desde o golpe militar de 28 de Maio de 1926. Pelo êxito que teve ao apresentar um superavit (de 300.000 contos à época) no seu primeiro orçamento, em Agosto de 1929.
Postas em ordem as contas públicas, viveu-se um período de 22 anos de aperto. Até aos princípios de 1950, altura em que o país começou a prosperar. Pelo meio coarctaram-se as liberdades[1] e a miséria de vida foi aquilo que se conhece.
A democracia implantada em Abril de 1974 com os seus desmandos, associada a um período de desgoverno total de (quase) sete anos (período socrático), atirou-nos (finalmente) para a bancarrota. E esta para um período de austeridade que, na melhor das hipóteses, durará, pelo menos, 15 a 20 anos. Queiram, ou não queiram os grupos de pressão. E se alguns com algum poder de fogo e de repasto, se acharem donos e senhores do país, a Europa (principalmente a Alemanha, antigo império sacro romano) se encarregará de mandar para cá um destacamentozinho, para impor a ordem.
 
Ninguém melhor que os artistas da escrita para nos elucidarem o que é a verdadeira austeridade. Poderíamos chamar à liça uma centena de escritores. Um milhar até. Ou mais. Nacionais ou estrangeiros. Ficamo-nos por quatro mestres da escrita; transmontanos. Que nos desculpem outros tantos ou mais, mas são os que temos à mão.
 
 
De “A Loba e o Rouxinol” de A.M. Pires Cabral (Macedo de Cavaleiros, n. 1941) extraímos uma citação sobre o modo de vida de uma família remediada transmontana: “ Era assim, naquele tempo, na generalidade das famílias simplesmente remediadas como a nossa. Cada um tinha um fato novo pela Páscoa e depois, ao longo do ano, não se falava mais em roupa nova, tirante um par de calças de cotim e alguma camisa de popelina, talhada por costureira. Se preciso fosse, sujeitávamo-nos a trazer as calças com as odiosas cuadas, remendos no fundilho que, ainda que fossem do mesmo tecido, sempre pareciam intrusas e humilhantes, uma chapada berrante de pano velho descorado pelo uso. Os irmãos mais novos aproveitavam as roupas sucessivamente deixadas em bom uso pelos mais velhos à medida que estes cresciam” […] “Não obstante a austeridade, quando fazíamos treze anos o Pai atribuía-nos uma semanada”.
E o que era uma semanada naqueles longínquos anos de 1954? Como nos diz o autor, eram 25 tostões!
 
 
Das “Histórias da Vermelhinha” de Bento da Cruz (Peireses, Montalegre, n. 1925), respigamos um episódio de alguém muito pobre, abaixo do remediado: “ Ao tempo, um par de botas era um luxo raro e de estimação. Quem as conseguisse, tinha de as poupar, como aquele rapaz que, ao fim de sete anos a servir Labão, conseguiu uns butes de cem escudos, feitos de encomenda pelo Coclas de Montalegre, obra acabada. Estreou-os pela Páscoa, a 5 de Abril, e só resolveu calçá-los de novo para a Senhora da Livração, a 15 de Agosto. Ia ele a caminho das Boticas, todo concho, descalço e botas ao ombro enfiadas no varapau. De repente, espeta uma topetada numa pedra e esborracha o dedo grande do pé.
- Olha se eu trazia as botas calçadas! Que tal as punha … – exclama ele, todo satisfeito.
Vão-se os dedos, fiquem as botas …
 
 
Das “Memórias de Céu e Inferno”, de António Passos Coelho (Valnongueiras, Vila Real, 1926) se transcreve o modo de vida de alguém absolutamente “miserável” em termos de dignidade humana: “ O nosso casebre resumia-se a pequeno quarto e dois compartimentos também de restritas dimensões, separados um do outro por um taipal e com uma cortina a fazer de parede fronteira; davam para um espaço mais amplo, em que se incluía a cozinha, com lareira e forno de lenha, de alqueire, que devia funcionar semanalmente se houvesse posses para mercar a indispensável farinha” […] “Minha tia ganhava algum em abastecer de água a casa da professora, que lhe retribuía com dez escudos mensais” […] “A bem dizer sustentávamo-nos de caldo, e muitas vezes não tínhamos pão para lhe migar. No tempo quente andávamos descalços, no frio sempre se conseguiam umas chancas, que não duravam sempre. A roupa era de remendos em cima de remendos, e, assim mesmo, escassa. Lembro-me de andar todo o dia coirapato para a tia lavar, corar, secar a minha única roupa”.
 
 
Não resistimos, finalmente, a esta bela passagem de “Ernestina” de J. Rentes de Carvalho (Vila Nova de Gaia, 1930)[2]: “ Nesse tempo em que o correio era luxo caro, pedia-se aos almocreves que dessem recomendações aos parentes de Chacim, a dia e meio de jornada, que se visitavam quando muito uma vez por geração”.
 
 

 
 


Post-scriptum
A reflexão a seguir não pertence a este escrito, mas a ela voltaremos brevemente com escrito próprio e aprofundado. A miséria deste país deve-se, em muito, à classe medíocre de comentadores e colunistas. Se não vejamos. Porque razão se procura ridicularizar uma medida cujo princípio é correcto, como o das facturas? Porque a mente de quem a comenta é perversa. Tão simples quanto isto.
Fosse a medida tomada há pelo menos 20 anos e, possivelmente, casos como o BPN, e outros semelhantes, não tivessem existido. E o povo português, não estaria agora a pagar uma factura que não é sua.
Armando Palavras
 
Referências:
CABRAL, A.M.Pires, A Loba e O Rouxinol, Âncora editora, 2004, pp. 40-41.
CARVALHO, J. Rentes, Ernestina, Quetzal, 2009, p. 14.
COELHO, António Passos, Memórias de Céu e Inferno, Fronteira do Caos, 2012, pp. 14,15 e 18.
CRUZ, Bento da, Histórias da Vermelhinha, Noticias editorial, 1991, p. 18


[1] Se algum período houve que igualou o período salazarista no que concerne à coarctação das liberdades, foi a época socrática. Nunca nos sentimos tão livres como a seguir a Junho de 2011! A falta de liberdade no país, e o silenciamento de alguns, continua em pequenas instituições, cujas chefias são desse tempo de má memória.
[2] Com ascendência transmontana. A sua família era originária dos Estevais, pequena aldeia do concelho de Mogadouro, onde o autor passou grande parte da vida, e ainda continua a ir por temporadas anuais, quando regressa da Holanda, pais que o acolheu há décadas, e onde constituiu família.
 

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