“-Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?
Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que poscom igo!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi ha jurado!
Ai Deus, e u é?
-Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é? “[2]
se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?
Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi ha jurado!
Ai Deus, e u é?
-Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é? “[2]
Abrimos
este texto, inédito, com uma célebre
cantiga de amigo de D. Dinis, rei poeta e lavrador, colocando-o assim no
cruzamento da literatura e da história. Tecido com
recordações de infância em
Trás-os-Montes , reconstruídas enquanto ficção e testemunho,
beneficia de algumas leituras, ocasionais umas, outras direccionadas ao
propósito de sua escrita.
O
essencial dos dados factuais nele usados provém de informações institucionais
da Junta de Freguesia de Lagoaça e da Câmara Municipal de
Freixo-de-Espada-à-Cinta, disponibilizadas na Internet.
O
desafio para a sua escrita veio-nos de Armando Palavras por intermédio de um
amigo com um e conterrâneo, a quem
agradecemos, e o seu pretexto imediato é o de integrar esta colectânea com emorativa dos 725 anos de outorga do foral a
Lagoaça, pelo rei D.Dinis, iniciativa a ocorrer em 2011, sob a responsabilidade
da Junta de Freguesia e Comissão de Festas
da Senhora das Graças, de Lagoaça.
1.
INTRODUÇÃO
“E um dia descobri-me
- de uma nudez estranha-
a escrever numa prancha
assente nos joelhos da imagem
que me ficara das longas horas
passadas a soletrar
o sapateiro da terra”[3]
Serpenteando
por aquelas arribas de um e outro lado do rio Douro, pasmada com as sombras geometricamente desenhadas na relva
verde e a beleza prateada das copas bem afeiçoadas das oliveiras derreadas de
azeitonas a “pintar”, sorvo o acre aroma das laranjas e laranjais dispersos na
paisagem verde escura de sombras com
duende, bordados no espaço de calmaria por mãos de fadas sob o privilégio do
microclima mediterrânico da região... Vou subindo, encantada, até às terras de
Lagoaça e do Freixo de Guerra Junqueiro, a “ terra mais Manuelina “ de
Portugal..., a estrada, nalguns pontos, muito esquisita aos olhos da criança
citadina, porque só entre montes a caminho do céu, ou então, no virar das
curvas, mostrando de imprevisto o rio a luzir lá no fundo longínquo a perder de
vista…
E lá estava a velha Estação do Caminho de
Ferro, transmudada em casa de turismo rural e de habitação, para meu sossego de ave de
arribação.
A fome
de horas torna mais intenso e gostoso o sabor do repasto com
que me vai de antemão deliciando, a cultura gastronómica secular de Lagoaça:
uma suculenta e macia posta de vitela, o estaladiço cabrito assado e o borrego
estufado, o cozido transmontano das cascas com
fumeiro e as finas fatias e nacos de presunto com
pão caseiro e azeitonas. Tudo bem regado de fino azeite e bom vinho da terra, com as doces laranjas de sobremesa a cortar o peso
da suculenta refeição.
Nas
ruas silenciosas e estreitas, mulheres sentadas à porta das casas, bordam, sem
pressas...
fora-se o velho fontanário, lamentavam as pessoas que por ali se sentavam dando dois dedos de conversa!
fora-se o velho fontanário, lamentavam as pessoas que por ali se sentavam dando dois dedos de conversa!
2. PRIMEIRA
APROXIMAÇÃO A LAGOAÇA, TERRA DE FRONTEIRA.
Na verdade, Lagoaça
é-me familiar desde que me conheço com o
gente. Porém, nunca a visitei nem de perto a vi. Identifico-a em fotografias
postadas na Net que me reavivam a memória que guardo da sua envolvência natural
e afectiva, presa à visão que dela tive de longe, num inesquecível passeio de
barco com amigos, pelo Douro, Parque
Natural Internacional.
Aprofundo então o meu
conhecimento desta aldeia, com o eu,
transmontana, pelo viés da leitura de “Ernestina”, um dos últimos romances do
exilado escritor português J. Rentes de Carvalho, há anos residente na Holanda,
onde é destacado embaixador de nossa cultura, e também ele de ascendência
transmontana de cujas raízes fortes alimenta a sua criatividade literária,
reconhecida e apreciada.
Estimulo igualmente o
meu conhecimento desta aldeia rural transmontana pela janela da história de
arte, em especial das célebres gravuras de Foz Côa e do seu cavalo paleolítico
de Mazouco que lhe ficam nas redondezas. E prossigo, pela leitura de
alguns resultados de escavações e estudos arqueológicos sobre a Fonte Santa ou Casal do Mouro de Lagoaça, um abrigo de
pedra sobranceiro ao ribeiro da Ponte, junto a um conjunto de Figuras Rupestres[4].
Próximo das minas da Fonte Santa, abandonadas, aí foram identificados dois
"painéis" verticais em xisto, de superfície lisa, com pinturas monocromáticas, a ocre.[5]
“Um dos painéis, uma laje quadrilátera com
cerca de 60 cm
de lado na parede lateral sul, representa duas figuras
antropomórficas de tamanho desigual e
uma mancha de forma indefinida. O segundo, na parede fundeira, é com posto por uma figura antropomórfica aparentemente
sobre um animal (talvez um centauro), por uma figura reticulada e por várias
manchas de forma indefinida. Dada a potência significativa de enchimentos de
terra e a dimensão do abrigo, há que considerar a possibilidade de este ter
servido de habitat coetâneo das pinturas. Abrigo rupestre com pintura esquemática provavelmente arquitectura
religiosa, pré-histórica. Conjuntamente com
as estações de Pala Pinta (Alijó), Penas Róias
(Mogadouro) e Cachão da Rapa (Carrazeda de Ansiães), constitui um
dos mais importantes testemunhos de
abrigos com pintura esquemática
da região de Trás-os-Montes”.[6]
Haverei no entanto de
conhecer também Lagoaça, ainda melhor, pelo estudo histórico demorado das suas
quintas: a quinta da Cesteira com
seu jardim privado, a quinta da Veiga Redonda e a do Vale das Vinhas.
Entretanto, remonto à
minha infância, no frio planalto de Carrazeda de Ansiães, voltado ao Douro e
Tua, rios que banham boa parte do concelho. Aí se me apresentou pela primeira
vez Lagoaça, terra desconhecida que desde então se me tornou tão familiar quase
com o
terra onde nasci e me fiz gente. Surge-me na névoa da memória a figura
simpática e afável do sapateiro de Lagoaça, em sua oficina de trabalho diário,
qual loja mágica! Suas duas únicas filhas, da minha idade, eram colegas de
escola e brincadeiras que sem contar, rápido nos iríamos perder na vida, para
sempre, à custa de mobilidades forçadas de quem nasce em terras de tudo e de repente, sem nada, delas abalando em busca de um futuro
prometido e a custo angariado pelos pais.
Van Gogh- Três pares de sapatos- 1886-1887 |
A casa onde viviam
ficava no caminho principal da vila que levava à igreja setecentista. Era por
isso paragem obrigatória todos os domingos, na ida para a missa. A mãe, figura
feminina de perfil esfumado e aparência indelével, assomava à janela, ao toque
do batente, uma minúscula e decorada mãozinha de ferro, e acenava-me
prazenteiramente risonha com o uma flor
a abrir-se ao sol da manhã, enquanto chamava para dentro as filhas, minhas com panheiras de pequenos trabalhos e muitos
folguedos. Enquanto isso, abria a porta o pai, o sapateiro de Lagoaça que pela
mão me levava até à oficina, no rés-do-chão, ao fundo das escadas, e que era
para mim a mais desejada sala de brinquedos, com
as suas formas de madeira pezinhos de crianças, mulheres e homens,
simetricamente alinhadas nas estantes junto ao tecto por cima da banca onde se
dispunham as ferramentas e as latas de cola de todos os tamanhos e rótulos de
bonecos coloridos. Depressa me chegaram então as guloseimas apetecidas:
bolinhos de amêndoa, num guardanapo de estopa e laranjas docinhas com o mel que eu bem conhecia já da pensão de minha
mãe a quem o sapateiro de Lagoaça, as ia vender juntamente com as azeitonas bem quartilhadas, as alcaparras
doces e os almudes de azeite de ouro finíssimo e quase transparente, sempre que
de sua terra voltava, de dez em dias, com
as mulas derreadas seguindo o velho e
fiel cãozito, o Perdido.
Já as filhas tinham
descido também para seguirmos para a missa em cujo final nos esperavam longas e
divertidas brincadeiras no adro da igreja. O sapateiro olhou então atento os
meus pés calçados com grossos
sapatos de camurça branca, com o quem
tirava o molde para as botas e os socos que minha mãe sempre lhe encom endava, antes do Inverno de duros nevões, chuvas
intensas e desvairadas ventanias, e os quais eu detestava pelo seu aperto e
peso de arrobas, e que rapidamente trocava pelas soquinhas abertas e ligeiras
que só deixava aos domingos e dias
de festa, por imposição materna ou da minha professora de escola primária.
Só esse seu jeito, me
fazia então lembrar o recado que minha mãe me encarregara de lhe entregar e já
havia esquecido:
- Sr. Botire (alcunha
que lhe construí trocando Victor de seu nome com
as botas de seu ofício), quando é que o meu pai pode vir provar as botas e os
meus irmãos os socos?
E com os dias da semana rascunhados a lápis grosso num
papel mata-borrão que guardei no bolso do bibe branco rendado, lá me fui de
mãos dadas nas filhas do sapateiro de Lagoaça, sonhando com
o dia em que ele e meu pai me levariam à feira de Moncorvo, com prar as amêndoas de açúcar e farinha branca ou de
chocolate, subindo depois até à Lagoaça dos meus sonhos de criança…de sempre
gostei de conhecer mundos, viajar até qualquer sítio só para ver com o era isso … E nunca tinha ido a Lagoaça que há
tanto tempo e tão bem conhecia de nome trazido pelas suas gentes para a minha
terra de vastos horizontes.
Entretanto e volvidos
os anos, subo virtualmente ao relaxante cenário do miradouro da Cruzinha, com seu moderno cruzeiro de pedra e ao miradouro da
Senhora dos Montes Ermos, às arribas do Douro Internacional, donde avisto
Espanha e o voo picado dos grifos e dos milhafres do Egipto, enquanto ouço
cantar o cuco da Carrasqueira ”quantos anos me dás solteira” e o cuco da
carrascada “quantos anos me dás casada”, e descodifico o seu vaticínio contando
pelos dedos o número de vezes do seu piar primaveril. Lembro o Melro em luta com o padre, longo poema de Guerra Junqueiro que
tantas vezes li e dramatizei com os
meus alunos de todas as idades e locais, enquanto lá no fundo, o Douro, fita
metálica sinuosa me atrai com o
poderoso íman transportando-me, qual ínfima poalha pelo espantoso património
natural, histórico e cultural de Lagoaça e suas redondezas com que, transmontana de gema, me irmano, sempre
sobrevoando o mundo presa às raízes do solo em que nasci , hoje já mais sonhado
no que da memória ficou do que realmente real e verdadeiro.
in: Trás-os Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(Continua)
[1] Maria Otília Pereira Lage,
docente da Universidade Lusófona do Porto , Investigadora do CITCEM da Universidade do Porto e membro da
direcção do Centro de
Estudos Transmontanos e Alto.Durienses. Sinopse de curriculum vitae em anexo
[2] (Cantiga
de amigo por D.Dinis. In Cancioneiro da Biblioteca Nacional 568, Cancioneiro da
Vaticana 171.)
[3] (João de Sever – Bibliagrafia
Temporã: Saber Sever. Porto, ed autor, 2006)
[4] Que
estão a ser estudadas por professores e alunos da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto
[5] eventualmente
datadas do II milénio a. C.
[6] (Classificação: Imóvel de
Interesse Público, Dec. n.º 31/83 de 9 de Maio). Consultar SANCHES, Maria de Jesus / SANTOS, Branca
do Carmo, T. O., Levantamento
Arqueológico do Concelho de Mirandela, in Portugália, nova série, v. 8 (1987), p. 17
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