quinta-feira, 19 de abril de 2012

Virgilio Gomes - Posta à Mirandesa


Especialidades bovinas

Terça, 27 Março 2012 21:01
(Posta Mirandesa)
Eu próprio fiquei surpreendido quando há alguns anos me perguntaram, numa exposição que fazia em Espanha, sobre as especialidades portuguesas de gado bovino. Eu falava de peixes, eles perguntavam-me sobre bacalhau e doçaria. Quando surgiu a pergunta: quais as especialidades culinárias confecionadas com carne bovina? quase me assustei. E em breve resposta afirmei que a excelente qualidade das nossas carnes leva a que a principal forma de as consumir (lombo e vazia) seja na grelha. E depois vinha-me sempre à memória o famoso “Lombo de Vaca de Empada de Espeto” de Lucas Rigaud e publicado no seu livro “Arte de Cozinha” (1780). Claro que esta receita não nos identifica, nem nesses tempos. E aquela designação até quase assusta. De facto a carne vai primeiro no espeto como que a “selar”, depois é envolvida com várias especiarias, e seguidamente “embrulhada” em massa para acabar de confecionar no forno.
Mas entrados no século XX, registamos nas primeiras publicações que as especialidades de carne de bovinos são espacialmente os bifes e pouco mais, sendo que temos a registar em restaurantes a confeção de rosbifes. Vejamos o que Carlos Bento da Maia, no seu livro “Tratado Completo de Cozinha e de Copa” (1904) sugere-nos, e por ordem alfabética, um Arroz de vitela, Acém de vaca em bifes panados, Carne de vaca assada no tacho à portuguesa, Costeletas de vitela, Lombo de vaca, Rosbife, Vaca à jardineira, Vaca de fricassé, Vaca estufada à francesa, Vitela enrolada, Vitela marmórea e Vitela recheada. Por estas designações são poucas as utilizações da carne nobre. Muitas destas receitas utilizam partes do bovino menos importantes ou cuja cozedura tem outras exigências. Ainda do mesmo autor, e na mesma obra encontramos uma série de receitas das “miudezas” do bovino. Assim encontramos uma receita para a Cabeça de vitela, Coração de vaca estufado ou grelhado, Fígado de vaca, Iscas de fígado de vaca, Língua de vaca gratinada, ou com azedas, ou de fricassé ou à francesa, Língua de vitela panada, Mão de vaca guisada, ou com molho vilão ou de fricassé, Mão de vitela frita, Moleja à Bento da Maia, ou frita à francesa ou à portuguesa. Como podemos observar parece haver mais variedade para os complementos que para as pecas de carne diretamente. Continuando no século XX e com o primeiro livro dedicado à “Culinária Portuguesa”, Olleboma em 1936, a predominância vai para os bifes. Mas vejamos o rol de receitas: Almôndegas, Bife à Cortador, à Marrare, de Carne de vaca de cebolada, de Vaca à indiana, de Vaca com molho de queijo, de Vaca enrolados à lisboeta, de Vaca enrolados à moda de Ovar, de Vaca na frigideira de barro à moda de Lisboa (para mim é o que habitualmente chamamos hoje de “Bife à Portuguesa”), de Vaca na grelha e de Vaca à moda do Minho, Carne de vaca estufada, Covilhetes à transmontana, Fígado de vitela de cebolada, Fígado de vitela recheado à transmontana, Iscas de vitela à lisboeta, Língua de vaca, Lombo de vaca à Marrare, Miolos de vitela, e Trouxa de vitela à transmontana. Será que nesta época a cozinha transmontana já se afirmava com tanta evidência? Perdoem-me o meu sentido regionalista mas a Carne Mirandesa já se afirmava nos melhores sabores.
Chegados aos finais do século XX, e lendo a inventário de Maria de Lourdes Modesto na sua “Cozinha Tradicional Portuguesa” (1982), o panorama não é ampliado. Assim encontramos para bovino adulto, vaca, nos Açores a famosa Alcatra e a Carne de vaca à antiga, na Madeira uma Carne assada, e depois na região lisboeta o Bife à café, Bife à Marrare, Bifes de cebolada, e o Bife com ovo a cavalo. Na região de Lisboa ainda Mão de vaca guisada. Para a vitela encontramos em Trás-os-Montes a Posta à mirandesa e Vitela assada no espeto, e na Beira Alta Costeletas à Moda da Beira e Vitela Assada de Lafões. Ainda as Tripas à moda do Porto e as Tripas aos molhinhos de Vila Real. Depois encontramos carne de vaca noutros pratos como o Cozido, as Feijoadas e no Rancho.
Bem, continua a pergunta: onde param as partes nobres dos bovinos? Romanticamente não vamos repetir a lenda do envio das partes nobres para as novas descobertas, ou globalização de resposta fácil. Como referi no início, as carnes nobres, lombos e vazias, são muitas vezes remetidas para os bifes sendo citado nos menus o tipo de carne utilizado, e o reflexo imediato no preço praticado. Importante é a forma de grelhar. Parece que muitos portugueses ainda não aprenderam a saborear estas carnes quando as exigem “bem passadas”. Os bifes também se simplificaram e passaram ao “prego” no pão ou no prato. Voltando aos lombos e às vazias eram utilizadas nos restaurantes para assegurar a moda dos “tournedós” para os lombos, e dos “rosbifes” para as vazias. Recentemente a famosa “Posta Mirandesa” assumiu papel de prestígio na nossa atividade de restaurantes. Lembro que este prato só recentemente passou de petiscos de feiras para a elite restaurativa. Até quase finais do século XX, a posta era um naco de carne jovem que era assada nas brasas, nas feiras, e colocada sobre generosa fatia de pão de centeio. Com a navalha que acompanhava todos os feirantes, iam cortando a carne enquanto o pão iam ensopando com o sumo da carne. Bendita hora da transformação deste petisco. Mas sempre comemos carne de bovino…! Onde ficam as memórias? As minhas melhores memórias ficam na carne de vaca guisada com macarrão, e outros guisados que já referi em crónicas anteriores. Quanto às “miudezas” lamento o desaparecimento das molejas tão apreciadas em França, e que como os miolos, também desaparecidos após a doença “das vacas loucas”. Portanto continuem a grelhar… as carnes nobres, e a confecionar no tacho as que necessitam de maior e mais cuidada cozedura.
No Brasil, para onde levamos parte do nosso gado bovino, resolveram bem a questão das variedades das carnes, servindo em rodízio.
Mas descansem pois a nossa carne bovina é excelente e recomenda-se. Para confirmação vejam a proteção que a legislação lhes dá com denominação especial: para DOP, Carnalentejana, Carne Arouquesa, Carne Barrosã, Carne Cachena da Peneda, Carne da Charneca, Carne Marinhoa, Carne Maronesa, Carne Mertolenga e Carne Mirandesa. Temos ainda IGP a Carne de Bovino Cruzado dos Lameiros do Barroso, Carne dos Açores e Vitela de Lafões. Para terminar o registo ainda em DO da Carne de Bravo do Ribatejo. Bem, depois desta lista não há que não ter orgulho. Para melhor entender as classificações queiram ler em detalhe o Site da QUALIFICA.
Bocas à obra… mas acompanhadas por um bom vinho, todas as especialidades saberão melhor.
© Virgílio Nogueiro Gomes
atualizado em Quinta, 29 Março 2012 11:02


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