Em contraste com os carnavais mediáticos das grandes urbes mundiais, muitas aldeias e vilas transmontanas mantêm as suas tradições do Entrudo, fiéis aos rituais do ciclo de Inverno, de raízes medievais, e que hoje são o retrato vivo de uma civilização rural que teima em sobreviver na região.
Os desfiles diabólicos de “caretos”, “matrafonas” e “facanitos”, assim como as leituras de “testamentos” (ou “papeladas”), os “julgamentos públicos”e as “pulhas casamenteiras” são o que perdura ainda de mais genuíno das tradições do Entrudo em Trás-os-Montes.
As festas do Entrudo fazem parte de um tempo excepcional e têm uma função transgressora, libertadora e, em muitas circunstâncias, iniciática. Trata-se de um tempo limitado mas intenso, em que tudo é permitido, um tempo de ruptura das proibições, um tempo de violação ritual, que se opõe aos “constrangimentos” da Quaresma que se avizinha.
O Entrudo procede do latim “introitus”, que significa entrada. Por isso, representa a entrada na Quaresma, ou seja, a despedida dos excessos e dos prazeres da carne (de onde veio a moderna designação de “Carnaval”), o que confirma bem o apurado sentido cristão da sua génese, ainda que o vejamos, como festa popular, inteiramente dominado por rituais pagãos.
Esta “despedida da carne”, que se festeja um pouco por todo o mundo em múltiplas manifestações consoante a idiossincrasia e o ímpeto catártico dos povos, vemo-la em algumas aldeias transmontanas assumir um carácter muito singular, revestindo um fenómeno antropologicamente assaz valioso.
A tradição dos “caretos”, tal como ocorre em Podence, Macedo de Cavaleiros, é bem o espelho desse fenómeno. E é de todas a mais activa. Os rapazes vestidos com os seus fatos de franjas de cores garridas, máscaras de lata e chocalhos à cintura, percorrem num frenesim “eléctrico” todos os cantos da aldeia, entram e saem pelas janelas das casas e alpendres, trepam aos telhados, em busca das raparigas solteiras que arrastam para a rua ensaiando com elas rituais eróticos. Estas, caso não queiram entrar neste “jogo” só têm uma solução: vestem-se de “matrafonas” (mascaradas como eles) e saem também para a rua, onde estarão imunes às investidas dos moços. O cortejo completa-se com os “facanitos”, ou seja os mais pequerruchos da aldeia que, mascarados de trasgos ou mafarricos, acompanham os demais, cumprindo, também eles, o seu próprio ritual de iniciação e garantindo, ao mesmo tempo, a continuidade da tradição.
Não menos singular é o mito/rito do Entrudo em Santulhão, Vimioso, conhecido como “julgamento do Entrudo”, onde se posicionam o “Anunciador”, o “Entrudo” acompanhado pela mulher e filhos, depois os “Advogados” de acusação e defesa e, por fim o “Juiz” exibindo o “livro das leis”. Esta alegorização do Entrudo e do seu clã familiar visa responsabilizá-los pelas desgraças do Inverno, especialmente os males agrários, pelo que o ritual do julgamento representa, simultaneamente, o seu esconjuro e a purificação da comunidade, que assim entrará, com outro ânimo, num novo ciclo produtivo. Daí que, lavrada a sentença pelo juiz, os bonecos de palha, simbolizando as figuras a esconjurar, sejam queimados na praça pública perante a azáfama do povo.
Mas com a mesma expressão ritual ou expressões afins, estas manifestações são comuns a outras zonas transmontano-durienses, como sejam os caretos de Vila Boa de Ousilhão, os Caretos aos Pares (compadres e compadres) de Lazarim, os Diabos, a Morte e a Censura em Bragança, a Morte e os Diabos de Vinhais, as Pulhas Casamenteiras em Mogadouro, os Testamentos ou Papeladas em Espinhoso, etc. [2]
As “pulhas casamenteiras”, são tradições nocturnas, cumpridas nos sítios elevados das aldeias, onde os rapazes, disfarçados, com o auxílio de um funil dos tonéis entoam as suas sentenças, em verso, denunciando a lascívia de uns, o falso puritanismo de outros, ou casando este com aquela, geralmente os “mais encalhados” da povoação e sempre num jeito de severa crítica social:
“Vamos casar Fulano com Fulana,
Se não já não casam mais.
Vamos casá-los aqui
Par’ós tirar dos gestais!”
O mesmo sabor crítico, imbuído de um controlo social sobre alguns dos “desmandos” mais privados e mais íntimos da cada um, achamo-lo também nas “leituras dos testamentos”, que no concelho de Vinhais são denominadas de “papeladas”, estes mais próprios das aldeias do norte da Região transmontana.
Habitualmente simula-se a morte de um burro. Noutros casos a morte não é simulada mas é efectiva: não de um burro, mas sim de um galo ou de quaisquer outras espécies comestíveis previamente devoradas em ávidas comezainas. Depois, dois ou três rapazes mascarados sobem a um palco improvisado e ditam o testamento do animal, perante os ouvidos atentos de cada vizinho, que aguarda, ansioso e perplexo, a parte do “defunto” que lhe tocará. E o porta-voz sentencia:
“A minha tripa delgada,
Por ser a mais dobradiça,
Vou deixá-la a Fulana
P’ra fazer uma chouriça”
Por vezes, da “papelada” sai uma literatura mais obscena, a que já se foram habituando os ouvidos da audiência:
“A minha tripa cagueira
Mais a pele dos meus q…
Vou deixá-los p´ra Fulana
P’ra fazer os salpicões”
E assim o animal se vai “libertando” das tripas, das orelhas, dos olhos, da dentadura, dos ossos da “suã”, das unhas (estas são geralmente para as viúvas…) e das próprias fezes, sempre com um toque de ironia popular e oportuna crítica social. Não raramente, a mordacidade da crítica chega a ter contornos “políticos”, como esta que ouvimos há alguns anos:
“Ao presidente da Junta
Que não faz nada de mais,
Vou deixar a minha m…
P’ra colar os editais”
Todas estas manifestações da tradição se inscrevem nos rituais do ciclo de Inverno, de raízes medievais e que hoje são o retrato vivo de uma civilização rural e cristã que sobrevive na Região. Nelas se acha, claramente, a original função iniciática e integradora das novas gerações, mas acha-se também, ainda que sujeita aos indisfarçáveis processos de aculturação, a matriz de uma identidade simbólica vivida não só pela comunidade presente, mas sobretudo pela comunidade emigrada nos seus regressos sazonais às origens.
Alexandre Parafita
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
Alexandre Parafita[1] natural de Sabrosa, doutor em Ciências Humanas e Sociais – na área de Cultura Portuguesa e mestre em Ciências da Comunicação – na especialidade de Antropologia da Comunicação, é docente do ensino superior e investigador nos ramos da mitologia e da literatura oral tradicional. Actualmente, enquanto investigador integrado do Centro de Tradições Populares Portuguesas da Universidade de Lisboa, faz parte da equipa incumbida de realizar o “Arquivo e Catálogo do Corpus Lendário Português”, no âmbito da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Autor de várias dezenas de obras, nos domínios da literatura infanto-juvenil e dos estudos do património imaterial, os seus livros são adoptados e recomendados em escolas e universidades, incluindo o Plano Nacional de Leitura (PNL).
[1] Escritor e Investigador / Centro de Tradições Populares Portuguesas da Univ. Lisboa
[2] A riqueza destas tradições, enquanto património cultural imaterial, tem merecido atenção de alguns estudiosos luso-galegos com vista à sua classificação como Património Mundial pela UNESCO, em conjunto com as festas e rituais de Inverno no outro lado da fronteira, mais propriamente em Viana do Bolo, Vilariño de Conso, Manzaneda, Laza, Verín e Xinzo de Limia, na Região da Galiza. Mas também na província espanhola de Zamora, na fronteira a leste com Portugal, são conhecidas as festas de El Tafarrón de Pozuelo de Tábara, El Zangarrón de Sanzoles, La Filandorra de Ferreras de Arriba, El Pajarico y el Caballico de Villarino Trás La Sierra , Los Diablos de Sarracín de Aliste, La Obisparra de Pobladura de Aliste, Los Cencerrones de Abejera, El Zangarrón de Montamarta, Los Carochos de Rio Frio de Aliste e Los Carnavales de Villanueva de Valrojo (sobre estas temáticas, cf. Gonzalez Reboredo, X.M. – Guia De Festas Populares De Galicia, Vigo, Galaxia, 1997; Gonzalez Reboredo, X.M.; et al. – Entroido en Galicia, Deputación da Coruña, 1985).
Bom dia e parabéns pelo seu blog. Há anos vi um documentário, ou reportagem, sobre uma viúva que ia voltar a casar, algures em trás-os-montes, e realizava-se uma espécie de cortejo (tipo entrudo) para transmitir à viúva que estava a "trair" o marido que já estava no cemitério. Era mais ou menos assim. Por acaso não me sabe informar de mais nada? Acho que seria interessante para o seu blog.
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