António Magalhães (em Sheffield) |
Foi de sua vontade que parte das suas cinzas fossem
postas debaixo de uma pedra em Lanzarote, e era de sua vontade também, que de
vez em quando lá fossem pôr uma florzita, “para que eu saiba que não fui esquecido.”
Sr. José.
O meu saudoso pai costumava dizer que, “nunca se
morre quando se vive no coração das pessoas.”
Dizia isto sempre que queria consolar uma alma
triste que havia perdido outra alma que partiu. E, pequeno, tenro de idade, eu
apercebia-me que usava essa citação porque em certas alturas da vida de uma
pessoa, em situações de impotência perante coisas inevitáveis e que não temos o
poder de controlar, não sabemos muito bem o que dizer.
Mas, pessoalmente eu sempre achei que o problema
não é não saber o que dizer, mas sim porque o vocabulário não tem ainda as
palavras suficientes que possam expressar os sentimentos, de maneira a que as
possamos usar para descodificar o que não conseguimos dizer, e que nos vem do
pensamento.
De qualquer maneira esta citação não era
originalmente do meu pai. Alguém o tinha dito e ele achou-a tão explicita em
relação ao sentimento de perda, de alguém que se ama ou se respeita, ou as duas
coisas juntas, que passou a usá-la, citando sempre a pessoa que o disse da primeira
vez, e que eu não me lembro o nome.
Mas tal como o meu pai, usei a frase algumas vezes,
e uma delas foi para que fosse gravada na lápide da campa do meu amigo Ademar,
em nome de todos os seus amigos. E já lá vão mais de trinta anos em que, no
pico da sua juventude, o Ademar partiu para o outro lado. Foi tão abrupta e
cruel a partida que durante anos repeti vezes sem conta a mesma pergunta no meu
pensamento. “Onde estás tu agora!?” Repeti essa mesma pergunta quando o meu
amigo Martins, abrupta e inesperadamente também ele partiu sem sequer ter a
oportunidade de dizer adeus. Repeti a pergunta quando o meu saudoso pai se foi
embora para o outro lado.
Mas nesse caso, sou obrigado a admitir que a sua
partida estava a ser preparada desde o dia em que lhe diagnosticaram o cancro
no estômago. Quero dizer, de facto, pensando bem, a partida já estava a ser
preparada muito antes do conhecimento do diagnóstico. Nós é que só soubemos a
partir dessa altura.
E por estranho que pareça, sr. José, não posso
deixar de expressar um sorriso, que de certa maneira me aquece um pouco o
coração, ao lembrar uma pequena história que o meu pai contava. Se o sr. José
tiver paciência digo-a em poucas palavras. “Um homem morreu e quando chegou ao
céu foi ter com Deus, e um pouco aborrecido disse-lhe. -Assim, meu Deus?
Tiras-me a vida assim, sem me avisares? – Deus respondeu-lhe… - Sem te avisar?
É culpa minha que não estivesses atento aos sinais de que te enviei? Não te dei
primeiro uma dor numa perna? Palpitações no coração! Falta de ar! Cansaço que
preferiste acreditar ser inexplicável. Quantos sinais mais, querias tu!?”
Hoje, ao recordar estas pequenas histórias que o
meu pai tão sabiamente nos contava, sinto uma espécie de calor interior que me
aquece esta alma sempre tão inconformada, e expresso isso com um sorriso.
Finalmente consigo fazer isso, porque nos primeiros anos da sua partida,
esperada, mas não desejada, tudo o que conseguia era um aperto no peito, um nó
na garganta, e os olhos enchiam-se-me de lágrimas que apressadamente corria a
esmagar com a palma das mãos, às vezes de punho fechado para que, vindo elas
nos momentos mais inesperados, não me desmascarassem os sentimentos a qualquer
altura do dia, em qualquer lugar. E nesse momento, enquanto me tentava ver
livre do embaraço, a mesma pergunta assolava o meu pensamento. “Onde estás tu
agora!”
De certa maneira o sr. José lembra-me o meu pai.
Não estou a comparar talentos. Falo de um mesmo cabelo branco, de uma testa
alta, que segundo ele, era sinónimo de inteligência. Uma mesma magia em contar
histórias. Ele, com aquele natural talento de encaixar pequenas histórias nos
momentos certos, de maneira a que deixassem uma mensagem nas entrelinhas. O sr.
José com este natural dom de enganchar as palavras umas nas outras, como cerejas
que se tiram de mão cheia de um cesto cheio delas.
Tal como o avô do senhor José, que foi de árvore em
árvore abraçando o tronco de cada uma delas, regando-as uma última vez com as
lágrimas de quem sabe que está, mas vai deixar de estar, também a última imagem
que tenho do meu pai é uma memória viva de um cenário bastante semelhante.
Ele tinha vindo do hospital, e nesse mesmo dia,
quando chegou a casa, ainda em pijama e roupão, com a vagareza de quem leva aos
ombros a doença que o levará para o outro lado, desceu as escadas que dão
acesso ao quintal, e num gesto que me comoveu profundamente, com as suas
dificuldades de quem já deixou pelo caminho da vida a ultima réstia de saúde
que fez dele o homem que foi, baixou-se em cada planta, em cada vegetal que ele
mesmo cuidou durante tanto tempo, e acariciou-os com ternura. Não lhe vi mexer
os lábios, mas sei que falou com todos eles. Que lhes disse adeus. E na
distância que me separava dele, meio escondido para que me não visse, ali
fiquei a olhá-lo pela janela da cozinha, lá do alto, a mexer os meus lábios, a
pedir-lhe desculpa, perdão mesmo, por sempre saber que além de um bom pai e bom
marido, um avô muito querido, era também um grande homem e eu nem sempre soube
ser um grande filho. Que tinha a simplicidade e a sensibilidade que têm os
grandes homens. E, poucos dias depois regressei a Inglaterra com essa memória
que gravei a ferro e fogo dentro da minha mente, sabendo que seria a última
imagem que teria dele. Quando voltei foi para o ver estendido no caixão com a
mesma dignidade que sempre teve em vida.
Resta-me lembrar isso ao longo da minha vida, e tal
como o sr. José disse, e isso de certa maneira serviu-me de consolo, lembrar
esses momentos, esses gestos de enorme grandeza e sensibilidade humana, e acima
de tudo, querer lembrá-los.
Quando através dos meios de comunicação tive
conhecimento da partida do sr. José, durante alguns dias fiquei com uma
sensação de vazio dentro de mim. Fiquei com a impressão de que tinha perdido
alguém que de certa maneira se encontrava comigo, em muitas ocasiões da minha
vida, para me contar histórias, tão mágicas e tão sitibundas que por momentos,
momentos que em muitos casos duravam horas, me fazia esquecer de um mundo que
tanto me afligia, para mergulhar num outro mundo onde a história, a cada página
desfolhada me absorvia profundamente.
Mas, não perguntava
a mim mesmo, “onde estás tu agora!” Isto porque o sr. José fez o favor de nos
deixar o seu talento como herança há disposição em cada livro, em cada melodia
de palavras.
Também não perguntava,
“onde estás tu agora” porque sempre achei que o senhor José se foi encontrar
com Baltasar Sete-Sois, Blimunda Sete Luas, e o padre Bartolomeu de Gusmão, e
juntos têm muitas conversas e exploram outros mundos, numa passarola cheia de
vontades num céu carregado de nuvens abertas.
E que se dane
aquela Maria brasileira, de Iguatemi, que depois de desfolhar um rol de
moralidades, tinha como desejo assistir de camarote ao churrasco da sua pessoa.
A carta que a pobre Maria de Iguatemi lhe enviou, além de ter sido uma
monstruosa infelicidade de quem não sabendo usar a caneta, com ela pode
provocar o maior acidente da sua vida, a si mesma, em certas partes da sua
extensa e ridícula ladainha, provocou-me um embaraço que só foi possível
suportar, pela natural curiosidade de quem quer saber quão longe a estupidez
consegue chegar. E de facto, neste caso, mais longe não poderia ter ido.
Mas, o que mais me
agradou, e que assim sem eu contar, depois de tanta merda de uma só vez, me
arrancou uma gargalhada, daquelas que dão tanta satisfação, que, com todo o
respeito, só se podem comparar a um orgasmo, foi a resposta curta, inteligente,
precisa, que o senhor deu depois de transcrever toda a pilha de merda que a
carta continha.
Só um homem com a
sua inteligência, com a sua magia em utilizar as palavras, de as encaixar de
maneira subtil e única, tinha a capacidade de em poucas frases expressar um
problema de mais de dois mil anos, e que tem afetado muitas Marias e Maneis,
não só de Iguatemi como em qualquer outra parte do mundo.
O sr. José foi
apreciado, nos quatro cantos do mundo, ou seja, lá quantos cantos o mundo tem,
como escritor de talento soberbo, mas também como homem integro, de grande
caracter, de grande humanismo. Mas porque há sempre o reverso da medalha,
também teve os que lhe quiseram mal, os que o odiaram. Mas até esses o sr. José
compreendeu e não lhes guardou rancor, até porque os representou muitas vezes
nos seus livros e deu-lhes voz, na esperança de acordar as pessoas para que façam
do mundo um lugar melhor para se viver. O sr. José compreendeu as pessoas que
foram criadas, os seus defeitos, os seus vícios, as suas incongruências, e até
as suas maldades, mas nunca entendeu o criador e as suas intenções.
E quem, no seu
juízo perfeito, o pode criticar por isso! Afinal, já nem se trata só do direito
a ter liberdade de expressão, mas também, de ter o direito de duvidar, de
analisar, de estudar, de comparar, de buscar o conhecimento, e de tirar
conclusões.
O sr. José
questionou a existência do Deus da bíblia. Criticou-o e apontou-lhe as
inconsistências, as barbaridades que quando se não conseguem explicar de
maneira satisfatória e convincente, se diz que foram interpretados fora do
contexto. E disse, que Deus está na cabeça do homem. Que quando o último homem
acabar na terra, a ideia de Deus morre com ele. É no cérebro humano que está
tudo. O bem, o mal, Deus e o diabo.
E eu concordo
plenamente. Por isso é que sempre achei que o sr. José nunca foi um ateu como
muitas pessoas o afirmaram. Sim, eu sei que negou a existência de um Deus
fabricado pela mão do homem. Ninguém mais do que o Sr. José trouxe Deus dentro
de si tão vivo como o sr. o fez. Com a sua grandeza, com a sua humildade, com o
seu grande humanismo, com a sua lucidez. Esse Deus que cada ser humano
transporta dentro de si e que parece fazer por ignorar, porque, para bem de
interesses que acabam por lhe serem alheios e os não servir de maneira alguma,
a não ser mantê-los escravizados à sua própria ignorância, preferem seguir um
Deus que promete, tal como diz um outro grande talento, António Lobo Antunes,
banquetes de bem-aventuranças. “Comecei a duvidar da história do camelo e da
agulha e dos tesos humildes e obedientes a quem se prometiam banquetes de
bem-aventuranças.” (Quarto livro de cronicas.)
O sr. José disse
que vivemos num mundo completamente esquizofrénico. Um mundo que vive
realidades tão opostas. Deveríamos andar no mundo para dizer aos outros quem
realmente somos e não o que temos para que se possam aproveitar de nós. Talvez
as pessoas precisem de encontrar o Deus que lhes vive na cabeça. Talvez que se
o encontrarem, o mundo possa continuar a ser um lugar de esperança.
E eu repito na
minha cabeça… “para que eu saiba que não fui esquecido.” Antes de partir
definitivamente, o sr. José esteve perto do outro lado e voltou, porque a sua
amada esposa, Pilar, o não deixou partir. E eu volto a repetir na minha cabeça…
“para que eu saiba que não fui esquecido.”
Sr. José, na
impossibilidade de me poder deslocar a Lanzarote para lhe colocar lá a tal
florzita, para que o senhor saiba que não foi esquecido, aqui lhe deixo a minha
sincera homenagem como símbolo da minha gratidão pelos momentos que me
proporcionou, e continua a proporcionar com a magia das suas palavras e do
significado que nelas incute. Quando, em muitos momentos da minha vida, a vida
me foi tão difícil de manejar, os seus livros levaram-me para um outro lugar
onde as atrocidades do mundo não me chegavam, mesmo que eu estivesse a ler
sobre elas.
Para terminar, gostaria de lhe dizer que além de
muitas outras coisas boas que fez, e que eu transporto
dentro do meu coração, sempre o lembrarei como o
escritor que criou a personagem do cão das lágrimas.
Muito obrigado.
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