Veja-se os Costas, os
Marcelos, os Césares, os Rios, as Catarinas, os Jerónimos, os Louçãs, os
Ferros, os Salgados, os Mendes, os Pachecos. É possível conter o riso face a
semelhante ramalhete?
Não é fácil decidir
se a culpa é do país, do regime ou dos bandos, no plural ou no singular, que
tomaram conta disto na maior parte de quase meio século. A verdade é que
Portugal não é respeitável. E não é respeitável na exacta medida em que, com a
subserviência interessada dos empresários, a conivência pasmada dos “media” e o
fascínio pelo Estado de uma curiosa “sociedade civil”, certas forças e personagens
políticas beneficiam de uma impunidade que, por definição, abre as portas à
prepotência, à inépcia e à corrupção.
Por cá, os
governantes, principais e acessórios, não são avaliados em função do seu
desempenho, mas em função da ideologia que o precede. Se calha de serem
situados à “direita”, em geral por outrem e nunca pelos próprios, a avaliação é
imediatamente negativa, excepto nos casos e nos momentos, não demasiado raros,
em que a “direita” presta vassalagem ao adversário. Se, como é costume, são de
esquerda, sucedem-se as vénias antecipadas a um “trabalho” (digamos) que
invariavelmente se distinguirá pela brutal falta de juízo, rigor, decência e
vergonha. E sobretudo escrutínio. À imagem das figuras dos “reality shows”,
conhecidas apenas por serem conhecidas, inúmeras figuras da política caseira
são, salvo seja, reverenciáveis apenas porque as consideram assim.
Para dar um mero
exemplo e não sair, cruz credo, do Partido Socialista, a história do PS e dos
líderes do PS é uma sucessão de prodígios cuja única fundamentação consiste no
facto de se estabelecer na “opinião pública”, sem direito a grande refutação, o
gabarito evidente e prévio de tais criaturas. Se esmiuçarmos as criaturas,
porém, percebe-se que os motivos de tamanhos louvores são um mistério
fascinante, ou uma revelação deprimente.
Não importa, nunca
importou que Mário Soares passasse as últimas décadas de vida a aplaudir
tiranias. Não importa, nunca importou que Vítor Constâncio fosse uma
insignificância sem escrúpulos. Não importa, nunca importou que Jorge Sampaio
fosse uma relíquia do marxismo ortodoxo. Não importa, nunca importou que
António Guterres fosse um monumento ao vácuo. Não importa, nunca importou que
Ferro Rodrigues fosse Ferro Rodrigues. Não importa, nunca importou que José
Sócrates fosse um egomaníaco responsável pela institucionalização da
trafulhice. Não importa, nunca importou que António Costa fosse um profissional
da pequena intriga e um amador da língua. Para o discurso dominante, foram,
respectivamente, o pai da democracia, um portento da economia, um homem bom, um
génio diplomático, um Ferro Rodrigues, um salvador, um supremo estratega.
Alguns viram-se
legitimados pelo voto, outros nem por isso. Em qualquer dos casos, a
legitimidade de todos para mandar dependeu sempre menos de eleições do que de
convenções: convencionou-se que os socialistas acima, junto com inúmeros
socialistas diluídos ou concentrados, oficiais ou oficiosos, e de distintos
graus de notoriedade e cumplicidade, merecem tomar conta de nós. Esta vasta
teia constitui, garantem-nos, uma “elite”, uma “elite” que só o é na medida em
que nos garantem sê-lo. No contexto, a mera palavra arrepia. E as críticas à
“elite” que a admitem enquanto tal arrepiam duplamente.
Ainda que crítico, o
reconhecimento da “elite” é uma forma de legitimação. Aquilo de que Portugal
padece é da submissão a um escassamente recomendável conjunto de indivíduos,
arregimentados em bandos e movidos por interesses comuns, não por acaso alheios
aos interesses do cidadão comum. O pormenor de o cidadão comum ignorar a
contradição e a submissão ser parcialmente voluntária não modifica a natureza
do arranjo: o arranjo é nocivo, e para funcionar implica o lendário
respeitinho, o “cimento social” que teimamos em não largar. Dito de maneira diferente,
a esquerda, já de si propensa a consagrar-se através de dogmas, mitos e
beatificações, ergue estátuas, metafóricas e ocasionalmente literais, por
Portugal em peso – o que resta ao resto fazer?
Resta ao resto rir.
Não há gesto tão repulsivo quanto o de rir com as “elites”, nem tão digno
quanto rirmo-nos delas. Não que rir seja o melhor remédio, o pior remédio ou
sequer um placebo sofrível. Acontece que o riso é um reflexo inevitável perante
determinado tipo de situações grotescas de que esta bonita choldra é
praticamente o padrão. Olhe-se em volta, sem olhos de quem integra ou sonha
integrar a choldra. Veja-se os Costas, os Marcelos, os Césares, os Rios, as
Catarinas, os Jerónimos, os Louçãs, os Ferros, os Salgados, os Mendes, os
Pachecos, os Santos, os Silvas e toda a sorte de bonequinhos que, mais por
apatia nossa do que por engenho deles, fazem da paróquia o seu quintal. É
possível conter o riso face a semelhante ramalhete?
Às vezes, sim. Às
vezes, o ramalhete e as descaradas rábulas do ramalhete inspiram uma coisa
entre o embaraço e a depressão. Com frequência, deviam inspirar galhofa,
galhofa pura, cristalina, imaculada. O que influencia as variações de
inspiração? O pormenor de uma pessoa manter uma réstia de optimismo ou dar
Portugal por perdido. Na presunção de que não há hipótese, uma pessoa
liberta-se do peso da esperança e entrega-se à gargalhada. É que se isto não
tem salvação, isto tem graça. E o som do escárnio é a perfeita banda-sonora do
fim, que talvez fosse provável e que será, por obra das “elites” (risos),
inevitável.
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