Alberto
Gonçalves - OBSERVADOR
27/4/2019
Um punhado de
criaturas que tem sonhos eróticos com a bóina do “Che” e os fatos de treino dos
sobas de Caracas não constitui exactamente um “movimento”, digno de alerta na
imprensa e tumultos na rua.
Um “grupo de
cidadãos” criou um “movimento apartidário” para exigir “uma campanha limpa”,
leia-se “sem mentira e desinformação”. Os subscritores, assaz preocupados com o
que acontece na América e no Brasil, pretendem “bloquear e denunciar” as
“notícias falsas nas redes sociais portuguesas”, de modo a votarem “sem a
intoxicação de quem despreza a democracia”. Isto é o que vem no “Público”.
O que não vem
no “Público” é que o “grupo de cidadãos” é uma dúzia de “personalidades”
habituais em programas televisivos de variedades, que o “movimento apartidário”
corresponde ao arco do poder que vai do PS actual ao BE de sempre, que a
preocupação deles com os EUA e o Brasil não se estende à Venezuela ou à Coreia
do Norte, que a denúncia e o bloqueio são métodos de regimes totalitários e
indivíduos com patologias, que o desprezo dessa gente pela democracia já a
intoxicou há muito e que o problema não são as “notícias falsas” –
invariavelmente produzidas à “direita” –, mas as restantes.
Um primeiro
problema, se a palavra não é exagerada, prende-se com as notícias que não
chegam a sê-lo. Um punhado de criaturas que tem sonhos eróticos com a bóina do
“Che” e os fatos de treino dos sobas de Caracas não constitui exactamente um
“movimento”, digno de alerta na imprensa e tumultos na rua. No máximo, formam
um caso de estudo psiquiátrico. No mínimo, um rancho de mimados convencidos de
que o mundo lhes deve atenção e obediência a um “pensamento” (força de
expressão) que ambicionam único. Se a imprensa teima em promover irrelevâncias,
a imprensa que se divirta enquanto pode.
Porém, um
problema imensamente maior que as notícias falsas são as notícias verdadeiras.
É, por exemplo, verdadeira a notícia de que existe uma Associação dos Amigos
dos Cemitérios, e que a dita se preparava para celebrar (hurra!) um protocolo
com a câmara de Lisboa para, cito, “dinamizar iniciativas nos cemitérios da
cidade”. Graças a um vereador do PSD, João Pedro Costa, soube-se igualmente que
os Amigos dos Cemitérios são de facto amicíssimos do PS e, fatalmente,
familiares do sr. César dos Açores, que só à sua conta enfiara três ou quatro
nos corpos sociais daquela prestimosa associação. Com franqueza, perdi-me
algures: não faço ideia se os parentes do sr. César, indivíduo abaixo de
qualquer suspeita, se reproduzem como cavalos-marinhos ou se cada parente
acumula 15 ou 16 cargos públicos. Certo é que, após viver à custa dos vivos, o
clã decidiu alargar o expediente aos mortos. Expandir o “core business”, julgo
que se diz.
E, novo
exemplo, é verdadeira a notícia de que o “eng.” Sócrates desatou a insultar o
ministro brasileiro da Justiça, depois de este ter referido vagamente o
processo judicial da ex-criança que sonhava com ventoinhas. De caminho, ouviu
escusadamente de Sérgio Moro um “não debato com criminosos pela televisão”. O
“eng.” Sócrates, que fingiu tomar as dores do falecido estadista Lula, ainda
não percebeu, e se calhar nunca perceberá, que, dadas as circunstâncias, o
único comportamento que o beneficia é a ausência, na Ericeira ou em
Vladivostok. Quanto à TVI, que lhe dá enorme palco para os trambolhões, sou eu
que não percebo se é cúmplice ou coveira do homem.
E, também
integrada no promissor estreitamento de laços com o “país irmão”, é verdadeira
a notícia de que, numa passeata do Bloco de Esquerda, as filhas do empresário
Camilo Mortágua cantarolaram umas rimas ao gosto popular que apelavam à morte
do sr. Bolsonaro, e que a rábula revisteira causou relativo escândalo nos
Facebooks do costume. Não vejo porquê. Se as meninas Mortágua abominam o presidente
do Brasil, é da mais elementar sinceridade desejar a respectiva morte em ritmo
de desgarrada. E se um autocarro as estrafegasse durante a cantoria eu não
perderia dois segundos a lamentar a tragédia.
E, sem sairmos
da semana vigente, é verdadeira a notícia de que 60 mil pessoas, mobilizadas
pelas igrejas católica e comunista, assinaram uma petição contra a abertura dos
centros comerciais ao Domingo. Nuns casos, será por causa das famílias.
Noutros, por causa dos trabalhadores. Era interessante descobrir o momento em
que umas e outros concederam a uma pequenina amostra da população o direito de
opinar em seu nome. Assim de repente, lembro-me de algumas famílias que
preferem ocupar o ócio nos shoppings do que na missa, e de alguns trabalhadores
que preferem ocupar o Domingo a trabalhar, possivelmente para evitar a família,
os shoppings ou a missa. De resto, além do infantil ressentimento face aos
símbolos do capitalismo, não há razão para fechar os centros comerciais e os
hipermercados e manter abertos museus, campos da bola, restaurantes, hotéis,
bares, pavilhões “multiusos”, portagens e, claro, igrejas, católicas e
comunistas. Em prol da coerência, 60 mil pessoas, com família e trabalho,
agradeceriam. Os nove milhões restantes calam e, pelos vistos, consentem.
E por fim é
verdadeira a notícia de que, no 45º aniversário de “Abril”, voltaram as
comemorações, as cerimónias, os discursos, as “lutas”, as “conquistas”, os
cravos, os Zecas, as “Grândolas” e toda a tralha arrastada desde 1974. O
folclore do 25 de Abril assemelha-se a um teste de decomposição de que os
cientistas se esqueceram e deixaram o objecto de estudo apodrecer há décadas:
os fungos são tantos que fundaram uma sociedade complexa no conteúdo e
desagradável na aparência.
O problema,
insisto, não são as notícias falsas. O problema é Portugal parecer mentira.
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