Rui Ramos
– OBSERVADOR
26/4/2019
É inquietante, a propósito do 25 de
Abril, ver o actual regime recorrer aos mesmos métodos de propaganda da
ditadura salazarista. Ninguém dá valor à liberdade - e à verdade?
Todos os anos, é a mesma coisa. Que eu
me lembre, já em 1976, no segundo aniversário, havia essa mania de os políticos
aproveitarem a data para lamentarem que o 25 de Abril não estivesse a ser
ensinado, que os jovens não soubessem como era antes e como passou a ser
depois, etc. Décadas depois, a ladainha continua a pingar monotonamente dos
púlpitos do Estado.
Mas há alguma coisa que mereça ser
aprendida na catequese oficial destas épocas de aniversário? Para começar,
temos, por exemplo, as comparações ignorantes entre o Portugal de 1974 e o de
hoje. Sim, hoje os portugueses vivem melhor do que em 1974. Mas em 1974, também
viviam melhor do que em 1926. O 25 de Abril aconteceu num país que estava a
passar por uma transformação social e económica que começara antes e que
continuou depois. Antes de 1974, o país industrializava-se, o “Estado social”
(já era assim que Marcello Caetano lhe chamava) expandia-se, o futuro SNS já
tinha os seus alicerces, e pela primeira vez na história toda uma geração
frequentava a escola. Portugal até já iniciara a integração europeia, com a
adesão à EFTA em 1960 e o acordo comercial com a CEE de 1972. Reconhecer isto,
porém, passa por crime de louvor à ditadura. Mas o que justifica uma democracia
não é a prosperidade – é a liberdade. Era o que a ditadura salazarista não
valorizava. Talvez por essa razão, também insistia em comparar as suas estatísticas
com as do regime anterior, a primeira república. Como seria de esperar, fazia
uma grande figura, porque Portugal, nos anos 50 ou 60, também tinha
“progredido” em relação a 1926. Percebe-se que a ditadura não tivesse outra
maneira de se promover. Mas é inquietante ver o actual regime recorrer aos
mesmos métodos de propaganda e falsificação da história. Ninguém dá valor à
liberdade sem uma auto-estrada?
O principal vício da anual exaltação
abrilista dos políticos é, porém, outro: a tendência para identificar
democracia e revolução. A revolução de 1974 desmantelou a ditadura salazarista,
que durante décadas manteve os portugueses em menoridade cívica. Como tal,
merece vivas e comemoração. Mas depois, como quase todas as revoluções,
ameaçou ser muitas coisas — algumas contrárias ao Estado de direito
democrático, e outras finalmente incompatíveis com aspirações e modas políticas
posteriores. O resultado foi que a democracia em Portugal, depois de ter
começado em 1974 em ruptura com a ditadura salazarista, continuou, depois de
1976, em ruptura com a revolução, através, por exemplo, das revisões
constitucionais e da integração europeia. Ora, este rompimento atingiu todos os
avatares revolucionários, não apenas o sistema económico do 11 de Março, mas o
sistema político do 25 de Novembro (aliás, o primeiro alvo de revisão, em
1982). Porque é que isto não é reconhecido? Porque o PCP e a extrema-esquerda
há décadas que reduzem o 25 de Abril ao 11 de Março, de modo a apresentarem o
regime, tal como se desenvolveu desde 1976, como uma “traição” ao 25 de Abril
e, portanto, um regresso do “fascismo”. Os outros partidos entram no jogo. Não
admitem que a democracia ultrapassou a revolução, e também eles reivindicam o
25 de Abril e afirmam a sua “actualidade” (à direita, através do 25 de
Novembro). É uma “luta de memória” que dá sobretudo a medida da influência do
PCP e da extrema-esquerda (outra herança da revolução). Mas enquanto o 25 de
Abril continuar assim, motivo de divisão e de especulação política,
dificilmente aprenderemos a sua história. Por mais que os nossos políticos, com
alguma hipocrisia, o lamentem todos os anos.
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