08 de janeiro de 2019
Na cabeça de um
bloquista, Portugal é um Estado produtor e proprietário dos meios de produção,
como as repúblicas soviéticas. O PIB é obra do Estado e dos seus servidores.
Bloco de Esquerda
publicou nas redes sociais um vídeo no qual Marisa Matias celebra a vitória no
Parlamento Europeu da sua "moção de rejeição ao relatório que pretendia
transformar o Tratado Orçamental em lei europeia". Esse Tratado, diz a
deputada e cabeça-de-lista do Bloco às próximas eleições europeias, foi
aprovado pelo governo de Passos e Portas, "vinculando Portugal a uma
política de austeridade".
No meio do entusiasmo,
Marisa faz esta revelação surpreendente: "um segredo bem guardado é que
Portugal dá lucro. O excedente primário do Orçamento do Estado será de seis mil
milhões de euros, mas devido ao serviço da dívida mais de oito mil milhões
serão canalizados para a finança - pouco menos do que investimos no Serviço Nacional
de Saúde e mais do que o investimento da escola pública".
O vídeo foi amplamente
partilhado. E, de facto, é um pedaço de propaganda que merece ser visto por
toda a gente, porque aquele minutinho e dezoito segundos define o Bloco de alto
a baixo.
Podemos passar por
cima da profunda desonestidade de Marisa, quando insinua que a
"austeridade" foi uma ideia peregrina do anterior governo. Não vale a
pena perder muito tempo a lembrar que o que realmente "vinculou Portugal a
uma política de austeridade" foi a iminência da bancarrota no governo
Sócrates.
O que é mais
interessante no vídeo é a conclusão de que "Portugal dá lucro". Ela
condensa todos os equívocos ideológicos da esquerda radical portuguesa e a sua
ignorância sobre como funciona um país, um Estado e a economia.
Em primeiro lugar, há
a confusão entre o país e o Estado. Portugal é o Estado, o Estado é Portugal,
tudo o resto é inexistente ou residual, acessório ou negligenciável. O país
define-se pela burocracia que alimenta. Para o Bloco, é o país que serve o
Estado, não o contrário.
Depois, há a ilusão de
que Portugal - essa burocracia-nação - "dá lucro". Na cabeça de um
bloquista, Portugal é um Estado produtor e proprietário dos meios de produção,
como as repúblicas soviéticas. O PIB é obra do Estado e dos seus servidores.
Ora, eu tenho todo o
respeito pelo "wishful thinking" das pessoas do Bloco (o sonho
comanda a vida), mas a realidade é ligeiramente diferente. Portugal tem um
Estado fiscal. O "lucro" que, segundo o Bloco, "Portugal
dá" são os impostos que o Estado cobra sobre os rendimentos do trabalho,
do talento e do esforço dos portugueses.
Se é difícil à
esquerda apreender esta lógica, faça-se um desenho: os impostos são uma fatia
do lucro que Portugal dá. Quanto maior for o "lucro" imaginário de
que o Bloco gosta, menor será o lucro verdadeiro de Portugal.
Por fim, há a ideia
risível de que o serviço da dívida não conta para saber se um país "dá
lucro" ou não. O Bloco, como em boa verdade grande parte da esquerda
portuguesa, acha que a dívida que o Estado contrai é uma espécie de tragédia
natural. É assim uma coisa que nos acontece, sem que o Estado a queria ou
controle. Como é que Marisa Matias e o seus camaradas acham que o Estado tem
financiado o SNS e a escola pública? Porque é que o Estado tem andado a pedir
dinheiro emprestado? Não será porque, afinal, não tem "dado lucro"?
No fundo, o que aqui
se vê é a relação sinuosa, cínica e oportunista da esquerda portuguesa com o
problema da dívida, que varia consoante os interesses políticos de circunstância.
Até esbarrarmos na parede em 2011, a esquerda dizia que nunca esbarraríamos na
parede. A dívida era o motor do crescimento e o cimento do Estado Social. Era
evidentemente virtuosa, eternamente gerível, naturalmente sustentável. Quando
esbarrámos na parede, a dívida passou a ser fonte de miséria.
Quem achava que a
responsabilidade de apoiar um governo traria alguma sensatez ao Bloco,
enganou-se: ainda não foi desta que o partido assentou os pés na Terra. Pelos
vistos, continua a acreditar que o repúdio ou renegociação da dívida
resolveriam por si só os problemas do país, sem contrapartidas nem dor, e a
ignorar que a redução de défices e o excedente primário - o tal
"lucro" - têm uma função: fazer com que Portugal dependa cada vez
menos dos credores. Se o Bloco não gosta deles, então talvez devesse gostar um
pouco mais da "austeridade".
Advogado
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