1. A Portaria 223-A/2018, de 3 de
Agosto, assinada pelo secretário de Estado João Costa, é um atentado sem
precedentes contra o carácter exclusivamente pedagógico das reuniões de
conselho de turma, para efeitos de avaliação dos alunos. Reduzir estas reuniões
a actos administrativos, como consta do n.º 5 do artigo 35.º da portaria em
causa, suscita desprezo profundo pela baixeza política do autor.
O rescaldo da greve às avaliações
patenteou de modo indecoroso como quem manda se permite desrespeitar as leis vigentes
e os direitos constitucionais. É indigno que se alterem normas gerais, com esta
gravidade, para retaliar por actos particulares verificados em contexto de uma
greve. Este Governo tem feito coisas que nenhum outro, confrontado com
situações semelhantes, ousou fazer. A mesma boca que nos tem massacrado com
lições de pedagogia babosa cuspiu agora, sem decoro, sobre a autonomia
pedagógica dos professores.
São canalhas as interpretações do
Ministério da Educação sobre o sentido da palavra “direito”. Ora o tortura para
que a lei diga o que não pode dizer, ora a muda ao sabor das suas conveniências
de momento, por mais sórdidas que sejam. São agressivas as minhas palavras?
São! Mas são resposta adequada à arrogância e ao desrespeito com que esta gente
espezinha valores básicos. O que tem sido feito revolve as entranhas de
qualquer professor que guarde uma ética mínima.
O clima de intimidação criado pelo
Ministério da Educação, com a coacção directa a que se prestaram inspectores
servis, permitiu uma generalizada fraude avaliativa, a que não faltou, até, a
transferência automática para o 3.º período de notas atribuídas no 2.º, num
atropelo gigantesco ao direito dos alunos e numa afronta miserável à idoneidade
dos docentes.
Recorde-se a este propósito que, em
carta aberta ao ministro da Educação, o Sindicato dos Inspectores da Educação e
do Ensino manifestou "a mais profunda indignação face à atividade que
alguns inspetores tiveram de realizar " e escreveu:
"Senhor Ministro, os inspetores da
educação não aceitam ser instrumentalizados e usados como polícias do
Ministério da Educação. E não aceitam desempenhar este papel, porquanto o mesmo
não se coaduna com a missão e competências da IGEC [Inspeção-Geral de Educação
e Ciência] legalmente consagradas. … Efetivamente, elementos do Ministério de
V. Ex.ª tudo têm feito para denegrir a imagem da Inspeção e dos
inspetores!"
Os inspectores aceitaram ser uma espécie
de polícia à paisana, que entrou pelas escolas e obrigou os professores a
cumprir orientações ilegais e ilegítimas de funcionários administrativos e
governantes déspotas, que não a Constituição e as leis.
E quando julgávamos que já tínhamos
visto tudo, faltava ainda esta vergonha.
2. As razões que estiveram na origem da
greve não desapareceram. As reivindicações fundamentais dos professores
continuam por satisfazer. Por isso, o início do próximo ano será tudo menos
normal. O cenário que se antevê para o próximo ano (e para os que se vão
seguir) não é bom.
As Aprendizagens Essenciais, agora em
fase de afirmação, reduzem programas mas não extinguem as Metas Curriculares
(que o próprio documento diz continuarem em vigor). O atrevimento e a
ignorância, que pretendem conciliar o inconciliável, vão gerar confusão e
resultados preocupantes.
Tal como está desenhada (e sem avaliação
séria da experiência feita) a decantada “flexibilização curricular” fará surgir
escolas (poucas) exigentes, que passarão a ser procuradas por pais igualmente
exigentes, e escolas (muitas) que cairão no logro da “diferenciação pedagógica”
para atender filhos de famílias menos afortunadas com planos de estudo
“flexíveis” e apropriados à facilitação da vida escolar dos que nascem já
cansados de tanto teclar nos gadgets tecnológicos e precisam de “mochilas
leves”, sem manuais escolares e livros de papel, que para isso há o Google. A
maior consequência desta (e sublinho desta) “flexibilização curricular”, se a
deixarem singrar, será retomar a origem social dos jovens como o maior factor
diferenciador das suas vidas futuras. Muitos não serão preparados para nada
exigente no futuro e serão vítimas da simplificação desqualificante da “escola flexível,
inclusiva”, mas rasa.
Os exames nacionais continuarão a
condicionar fortemente as práticas docentes e são, obviamente, incompatíveis
com as lógicas da flexibilização curricular. A pergunta a que João Costa não
responde é: como se preparam os alunos para os exames nacionais no final do
ano, iguais para todos, quando cada escola escolhe os conteúdos que quer
ensinar ao longo do ano?
Este Governo desistiu da escola pública
e do serviço nacional de saúde. A mesma lógica das aprendizagens essenciais,
fáceis e curtas, que vai afastar os mais pobres de Eça ou Garrett e deixar para
os colégios privados a formação das elites, está subjacente à recente denúncia
do presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, quando
nos recordou que o Serviço Nacional de Saúde, cada vez mais descaracterizado e
a aproximar-se da redutora visão caritativa, teve, em 2018, 4,3% do PIB nacional,
isto é, a percentagem mais baixa dos últimos 15 anos, responsável pela
indignidade de vermos crianças a receber tratamentos de quimioterapia nos
corredores do Hospital de S. João, no Porto, enquanto os ricos se tratam com
conforto nos hospitais privados.
3. O futuro dirá se a tradicional paz
podre acomodatícia do sindicalismo docente (que adia mas não resolve os
problemas de fundo) foi quebrada pelo novo Sindicato de Todos os Professores,
por forma a inverter a continuada perda de estatuto social da classe e a
acelerada degradação das respectivas condições de trabalho. Mas no presente, ao
menos, o STOP e os que o apoiaram mostraram haver alternativas à abdicação, ao
conformismo e ao politicamente correcto e identificaram o padrão que subjaz e
liga os dois pontos que abordei anteriormente. Com efeito, tem-se tratado de
pulverizar uma carreira docente como a que existia antes de 2005,
proletarizando os professores e domando-os, para lhes pagar cada vez menos. E
que pedagogias e metodologias melhor cumprem tal desígnio político, senão as
balelas das visões sistémicas “transdisciplinares” do saber, onde, no limite,
qualquer um pode ensinar não importa o quê, avacalhando de modo “flexível” o
valor intrínseco do conhecimento científico?
Tenhamos presente a metáfora da rã,
nadando tranquilamente num recipiente de água fria. Quando uma pequena chama
começar a tornar morna a água, a rã acha agradável e continua a nadar. Se a
temperatura continuar a subir, a rã vai-se debilitando e termina cozida, coisa
que não lhe aconteceria se a tivessem lançado de chofre na água quente, donde
ela saltaria com um imediato golpe de pernas.
O papel do STOP foi convidar os
professores, gastos, “cozidos” em lume brando durante anos, a usarem as pernas
e saltarem do caldeirão.
*Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
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