Uma “comunicação social” domesticada, uma resma de partidos vendidos à caridade alemã, a gratidão dos privilegiados e um presidente com fobia do confronto explicam parte das coisas. Não explicam todas
6 minutos e 47 segundos. Parece o título de um filme americano, mas é um filme português. Trata-se do tempo – contado pelo Miguel Santos Carrapatoso em reportagem neste jornal e incluindo o pedacinho em que a maquineta encravou – que o dr. Costa demorou a limpar a Serra de São Mamede e a dar o exemplo em matéria de prevenção de fogos florestais.
De agora em diante, o cidadão consciencioso já não tem desculpa para desleixar o matagal. Basta acordar, vestir o casaco verde mais impecável que a alta costura líbia conseguiu conceber, apanhar um helicóptero patrocinado pelo contribuinte, rumar a um bosque à escolha, enfiar caneleiras, viseira, protector dos ouvidos e capacete, pegar na roçadora, garantir que as televisões filmam o exercício, fingir que decepa dois tufos de musgo, remover os adereços, regressar ao helicóptero e a casa e aguardar o justo reconhecimento popular por tão destemida saga em prol do bem comum. Não custa nada: ao dr. Costa não custou um cêntimo.
Os cínicos, leia-se a “direita inorgânica do Observador” (cito Sua Excelência, o primeiro-ministro), reduzirão a proeza a um gesto de propaganda reles, assaz propenso a burlar as massas e pouco propenso a burlar as matas. Ou seja, para esses sujeitos de má-fé, viúvos de Pedro Passos Coelho e lacaios do “neoliberalismo”, logo que volte o calor voltará a arder o que sobrou do ano passado (e que, feliz ou infelizmente, não foi muito). O próprio dr. Costa admite a hipótese.
O que ele não admite, para descanso da população ansiosa, é demitir-se em consequência de eventuais calamidades. Isso é o que a “direita inorgânica” queria (a direita orgânica está bem assim, obrigado): mal se reiniciem os incêndios, o dr. Costa tomará a atitude que o seu cargo exige e, aposto, partirá para uma praia espanhola, a coordenar remotamente as operações de propaganda. De seguida, fará um discurso condoído, promessas de medidas inadiáveis, apelos à participação da “comunidade” e a conscrição forçada ou voluntária de cabras sapadoras. Daqui a um ano, nos intervalos do Benfica, dedicará outros 6 minutos e 47 segundos ao arvoredo, com o espectacular casaco verde, a permanente gargalhada de respeito pelas vítimas e o jornalismo patriótico a tiracolo. O dr. Costa é um líder autêntico, um farol cuja luz atrai tudo para os calhaus, incluindo os ditos.
Agora a sério, em que espécie de país é que semelhante exibição de desprezo pela inteligência alheia passaria impune e até – em casos de sabujice terminal – elogiada? Na Coreia do Norte, de certeza. E talvez naqueles desterros onde o sociólogo Boaventura S. S. passeia trajes indígenas. De resto, se calhar por não conhecer a realidade da Jordânia e do Uganda, falham-me os termos de comparação. Claro que uma “comunicação social” (desculpem o jargão) domesticada, uma resma de partidos vendidos à caridade alemã, a gratidão dos privilegiados e um presidente com fobia do confronto explicam parte das coisas. Duvido que expliquem as coisas todas.
O à-vontade com que os governantes, ou o bando que desempenha o papel, atropelam a decência não é normal sob qualquer perspectiva. Nem eles antecipariam tanta facilidade, donde o evidente gozo com que a usufruem. De facto, fazem o que lhes apetece e, o que agrava só ligeiramente a situação, sabem-se livres de fazer o que lhes apetece. E sabem que nenhum castigo lhes advirá. Podem subir os impostos a níveis inéditos e são aclamados por “virar a página” da “austeridade”. Podem aumentar os gastos do Estado para contentar clientelas e são louvados pelo rigor. Podem estrafegar a saúde e o que calha para controlar o défice e são beatificados a pretexto da “consciência social” (além de apreciados pelos “utentes” que sofrem a manha). Podem baixar o défice de 2,8% para 3% e são glorificados pelo “recorde” da “história democrática” (porque o dinheiro “injectado” na CGD aparentemente não conta). Podem banhar-se nas ignomínias da bola. Podem encenar a comédia de Tancos ou, em actos sucessivos, a tragédia de Pedrógão Grande.
Em suma, podem tudo. E poder tudo, sem escrutínio ou receio, dúvida ou sanção, é um sintoma, razoavelmente inequívoco, de que o regime não se recomenda. A possibilidade, crescentemente rara, de se escrever isto prova que ainda não estamos em ditadura. Porém, já não estamos exactamente em democracia. Entre dois pontos há sempre um processo, brusco ou suave, manso ou violento, sombrio ou cómico. Eis o lugar em que nos encontramos, que por acaso coincide com o que escolhemos e, lá vai redundância, com o que merecemos. Boa Páscoa, para quem acredita em ressurreições.
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