sábado, 2 de dezembro de 2017

O meu irmão Che


Juan Martin tinha acabado de chegar à central de camionagem onde trabalhava quando viu a manchete do jornal Clarín: “A Bolívia anuncia que o Che morreu”. A capa mostrava uma foto do guerrilheiro argentino, vestido com a habitual farda militar e a fumar um charuto. Na segunda página do jornal, vinha a famosa fotografia do Che de “rosto inexpressivo, tronco nu, olhos abertos, braços ao longo do corpo e cabelo em desalinho, sobre a placa de cimento da lavandaria do hospital Vallegrande”, na Bolívia. Para Juan Martin foi um choque tremendo que fez questão de guardar só para si. Na empresa onde trabalhava a distribuir produtos lácteos, ninguém sabia que era o irmão mais novo de Ernesto Che Guevara. E ele nada disse.
O silêncio que Juan Martin decidiu manter naquele dia 10 de outubro de 1967 prolongou-se por mais de 50 anos. Desde que o irmão foi fuzilado na sala de aula de uma escola primária de La Higuera, uma pequena aldeia no sul da Bolívia, nunca falou publicamente sobre ele. Só visitou o local muito, muito tempo depois, e recusou sempre entrevistas ou comentários. Nunca quis escrever um livro ou ajudá-lo a escrever. Fechou a sete chaves as memórias que tinha daquele Che, que conheceu quando era simplesmente Ernesto, convencido de que não deviam e não podiam ser partilhadas. Até que, em 2009, tudo mudou.
(…)
Depois da criação de Los Caminos del Che, Juan Martin esbarrou, por acaso, com Armelle Vincent. A jornalista francesa tinha-o entrevistado anos antes para uma reportagem sobre o negócio da venda de charutos cubanos para a revista L’Amateur (depois da saída da prisão em 1982, Martin tornou-se no primeiro importador de charutos Havana). Naquela altura, não quis falar de Ernesto, mas as coisas entretanto tinham mudado. “Agora já falas do teu irmão?”, perguntou-lhe Arnelle. Juan Martin respondeu-lhe que “sim” e a jornalista propôs-lhe fazerem uma espécie de entrevista sobre o Che. “Não foi de pergunta e resposta, foi mais uma longa conversa gravada”, explicou o argentino. Foi essa longa “conversa gravada” que deu origem ao livro O Meu Irmão Che, um relato pessoal e familiar da vida de Ernesto Che Guevara, desde os seus primeiros anos de vida à sua morte em 1967, na Bolívia, e dos acontecimentos de que foi protagonista. Publicado recentemente em Portugal pela Objectiva, o volume saiu primeiramente em França. “Só que eu não falo francês…”, lamentou Juan Martin. “A Armelle enviou-me o original em francês, mas eu não o conseguia ler. E com o tradutor Google não dá…”, brincou o argentino, que só conseguiu ler o livro de que foi coautor quando este saiu em espanhol.
A biografia, que é também uma autobiografia, tem como “objetivo humanizar o Che” e colocar dentro da sua famosa imagem “um conteúdo também de pensamento”. “Ernesto era um homem, é preciso tirá-lo do seu pedestal e devolver a vida a essa estátua de bronze, para perpetuar a sua mensagem”, refere o livro, logo nas primeiras páginas. É que, apesar de a figura de Ernesto Che Guevara ser uma das mais famosas, as suas teorias políticas são, em grande medida, desconhecidas. “Disse uma vez que as duas imagens mais conhecidas do mundo são a de Cristo e a do Che, e um amigo disse-me que lhe parecia que não, que a de Cristo é muito mais conhecida”, afirmou Juan Martin durante a conversa com o Observador. “Creio que sim, mas Cristo foi morto há mais de dois mil anos. O Che morreu há 50.”


Sem comentários:

Enviar um comentário

“Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à artificial“

  “ Nexus :  Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à artificial “, aborda como o fluxo de informações moldou a histó...