JORGE GOLIAS
A maior parte das vezes em que
parti para a escrita de uma crónica sem uma ideia mínima do que iria escrever,
o texto foi para a gaveta. A esta gaveta chamo de couseiro, que se deixa
adivinhar como um lugar onde se guardam cousas. Coisas que podem ser ideias,
frases, fragmentos literários, textos, etc.
Tenho, portanto, um couseiro
cheio destas coisas que o tempo vai tornando inúteis, ou que ainda resistem à
sua erosão, esperando uma oportunidade de vir à luz do dia. Nos meus textos cultivo
a plasticidade da língua. Talvez porque me ficaram na memória as inúmeras vezes
que a minha mãe me repreendeu com alguma severidade, dizendo: -dobra a língua!
Quando eu dizia alguma grosseria inapropriada diante da autoridade materna. Isso
deve ter-me levado a usar a língua com mais leveza e dar algumas voltas a mais
para tornear a falta do efeito imediato de um palavrão no momento certo.
O pai nunca me fazia estes
reparos, não porque ele também praticasse algum vernáculo, mas porque na frente
dele os amigos os praticavam e eu ouvia. Esclareço já que não ia mais longe do
que alguma porra ou merda, em vez de poças ou porcaria, portanto, vernáculos
suaves.
Então, se a minha avó me iniciou
na linguagem charra, ou seja, popular, mas sem vernáculos, cheia de provérbios,
através dos quais recebi muita da minha educação familiar e social, a minha mãe
cuidou mais da minha lisura de linguagem. Os provérbios, que muitas vezes são
rimados, cantados (tão ladrão é o que vai à horta, como o que fica à porta;
castanhas do Marão, a escolher se vão; comer e ralhar é só começar; come-se a
perdiz com o dedo no nariz, etc.), deram-me a tendência cantante com que muitas
vezes escrevo, rimando com frequência, e metendo redundâncias quando se ajusta
e cacofonias quando o texto as pede e as deixa passar, ou eu faço com que
passem.
Por outro lado, meu pai legou-me
a capacidade de contar com humor, de rir com vontade, e foi dele que recebi
muito do imaginário popular, de cenas da vida rural que ele conhecia bem,
estórias e contos que me serviram para muitos dos meus textos jornalísticos e
outros. Neste ambiente familiar, dos Sales, os avós maternos, falta falar da
figura patriarcal do avô Francisco, o antigo colono de Fernando Pó e depois
emigrante em Cádis. Estrangeirado, culto e moderno, chegou tarde ao seio da
família e partiu cedo demais para nenhures, tinha eu 12 anos. Mas foi com ele
que me iniciei nas primeiras letras, com a leitura de o Primeiro de Janeiro,
um matutino do Porto, e de Os Ridículos, um jornal de humor lisboeta.
Este, sobretudo, deve ter-me despertado a atenção para a necessidade de
perceber o que tanto fazia rir o avô. Tenho ainda na minha memória as imagens
do pós-guerra que o DN publicava mesmo meses depois do seu fim. Como paga de me
ter iniciado no que muito prazer me dá, fui o mais presente da família nos seus
últimos dias, lendo para ele, quando já não o podia fazer. Talvez por isso
herdei dele o relógio de bolso ómega com uma corrente de prata com uma
esmeralda. E foi ele que me mandou fazer a primeira foto, aos 5 anos, com uma
dedicatória, onde posei para a fotógrafa de máquina de tripé em calções e
camisola e meias costuradas pela mãe. Mas, hoje, o que mais me gostava de ter
dele (no sentido galego de me gusta) era o chapéu, palhinha à Maurice
Chevalier, que exibe na foto que tenho aqui à minha frente, no meu posto de
trabalho.
Ficam então aqui inscritas as
raízes do meu modo de escrever, algo que nunca tinha tentado desenhar, mas que
hoje me surgiram em torrente de escrita como se uma súbita inspiração me
tomasse. E, tal como escreveu o O’ Niell, eu vos digo tomai lá!
CNX17DEZ2025JG84

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