Com desfaçatez olímpica, ano após ano, os
governantes parecem competir na criatividade de perpetrar as maiores
patifarias.
É para mim evidente que o momento que se vive
no ensino está longe de ser aceitável. Mas era previsível para quem acompanhou
a evolução da intervenção do PS, desde a preparação do programa eleitoral até à
apresentação do programa de Governo. Os comissários políticos a quem o
ministério foi entregue transformaram uma discussão, que se desejaria séria,
num exercício populista de conquista da opinião pública. Confundiram opiniões
datadas com factos e apresentaram interpretações como evidências.
O conhecimento recente do resultado dos
diferentes processos de colocação de professores expôs a existência de um
elevado número de docentes dos quadros desterrados para escolas a centenas de
quilómetros das residências, porque os serviços do ministério apenas
consideraram horários completos, contrariamente à prática dos últimos 11 anos,
que sempre admitiu, para o mesmo efeito, também os horários incompletos.
Ora, a necessária alteração de muitas práticas
da Administração Pública em matéria de Educação não pode consistir na sua
entrega a expedientes processuais de momento, que não a dignificam. A dignidade
da Administração Pública e o conceito que temos de Estado de Direito são
visceralmente incompatíveis com iniciativas, ainda que legalmente suportadas,
que, sem aviso prévio, mudam os processos seguidos há uma década.
Enquanto os concursos de admissão de
professores respeitaram duas premissas básicas, a saber, uma lista universal de
graduação profissional e uma precedência legítima de escolha de vagas (primeiro
os do quadro e depois os que a eles ainda não tinham sido admitidos), o sistema
esteve estável. Quando as mentes perversas dos burocratas de serviço o
capturaram, com um expediente fraudulento para iludir a obrigação comunitária de
terminar com o abuso de sucessivas contratações precárias para prover
necessidades permanentes, os atropelos e as injustiças sucederam-se em
catadupa. Com desfaçatez olímpica, ano após ano, os governantes parecem
competir na criatividade de perpetrar as maiores patifarias e aumentar o número
dos que, com menor graduação, ultrapassam os mais graduados.
Um belo exemplo deste estado de coisas deu-o a
secretária de Estado, Alexandra Leitão, no primeiro dia deste mês, em
entrevista à RTP. É dela a afirmação que transcrevo, retirada da entrevista:
“Mas, exactamente para respeitar a lista graduada, todos os professores, de
todo o país, podem concorrer à vaga.”
Esta afirmação é falsa. Alexandra Leitão foi,
obviamente, entrevistada porque há protestos de professores. Os protestos
partem daqueles que pertencem aos quadros e têm uma causa próxima e outra
remota. A próxima radica na circunstância de estes professores terem sido
objecto de um procedimento, em sede de concurso, diferente do seguido nos
últimos 11 anos. A remota refere-se à dança macabra em que se transformaram os
concursos de recrutamento e mobilidade dos professores, porque legisladores
perversos criaram castas na classe e acrescentaram aos processos injustiças
sucessivas.
A afirmação falsa segue-se a uma explicação da
tramitação de um concurso para vincular, extraordinariamente, professores.
Alexandra Leitão induziu em erro uma jornalista mal preparada e a opinião
pública que, ao invés de esclarecer, manipulou. Não puderam concorrer à “vaga”
de que ela falava “todos os professores de todo o país”. Só puderam concorrer
àquela “vaga” os professores contratados que reuniam um determinado número de
requisitos. Não puderam concorrer os professores dos quadros de agrupamento de
escolas ou de escolas não agrupadas, nem os professores dos quadros de zona
pedagógica. Exactamente os que protestam porque, sendo mais graduados na tal
lista invocada por Alexandra Leitão, vão ser ultrapassados por outros menos
graduados. Alexandra Leitão é professora de Direito. Não acredito que não
estivesse bem consciente de que o que afirmou era grosseiramente falso e iludia
o que foi chamada a clarificar.
Urge, agora, corrigir de imediato os atropelos
a que me referi em sede de mobilidade interna. Urge, depois, alterar os
processos, começando por extinguir concursos extraordinários e cuidando de
garantir que todos os professores tenham sempre acesso a todas as vagas, no
respeito rigoroso pela sua colocação numa lista nacional de graduação
profissional. Não é difícil e é simplesmente justo. Bastava que quem manda
entendesse que, se de um dia para o outro se varresse toda a burocracia
estúpida e sem sentido que verga o dia-a-dia dos professores, se de um dia para
o outro se outorgasse às escolas a autonomia que lhes castra as iniciativas, de
um dia para o outro mudaria o clima organizacional e, de um dia para o outro,
professores e escolas teriam uma existência mais feliz.
A principal função da escola pública, qual seja
a de garantir oportunidades idênticas a todas as crianças e jovens, vem de há
muito, seja o Governo da responsabilidade do PS ou do PSD, a desconsiderar os
seus professores e a usar os mais variados mecanismos de desonestidade política
para os proletarizar e escravizar. E a classe tem-se tornado numa classe de
dependências, cada vez com maior dificuldade em compreender o valor da
independência e pagar o seu custo. Dir-se-ia que a defesa da dignidade
profissional e da independência intelectual dos professores virou masoquismo.
Dir-se-ia que os professores, teoricamente livres, têm usado essa liberdade
para permitirem que os condicionem a todo o tempo.
Com efeito, os professores constituem hoje uma
espécie social cuja identidade e características dependem, cada vez mais, das
atitudes que os governantes tomam em relação a eles. A deontologia profissional
(por definir em sede de ECD), a dignidade profissional e a independência
intelectual da classe cedem ante qualquer norma legal, por mais iníquo que seja
o conteúdo e boçal a autoria. Inevitavelmente, quando se reflecte sobre esta
circunstância, o desabafo de Harriet Tubman aplica-se-lhe como dilacerante
ferrete: “Libertei mil escravos. Podia ter libertado outros mil se eles
soubessem que eram escravos.”
Professor do ensino superior
Sobre
esta questão, e a origem destas patifarias denunciadas por Santana Castilho,
clique AQUI.
Quanto à autonomia das escolas é preciso reflectir bem sobre o assunto. Contribuiria para um melhor sistema, de facto. Mas antes de apontar para essa finalidade é preciso precaver a mentalidade cacique que renasceu nos tempos de Sócrates e continua implantada. É, aliás, essa mentalidade que tem mantido corrupto o sistema há 12 anos!
Actualizado a 7 de Setembro de 2017
Quanto à autonomia das escolas é preciso reflectir bem sobre o assunto. Contribuiria para um melhor sistema, de facto. Mas antes de apontar para essa finalidade é preciso precaver a mentalidade cacique que renasceu nos tempos de Sócrates e continua implantada. É, aliás, essa mentalidade que tem mantido corrupto o sistema há 12 anos!
Actualizado a 7 de Setembro de 2017
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