sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A lista dos cúmplices da tragédia da Venezuela também inclui o Bloco, Sócrates e Portas


José Manuel Fernandes - OBSERVADOR

Nestes dias em que só o PCP e Boaventura Sousa Santos dão o peito às balas pela deriva autoritária na Venezuela é bom lembrar a adesão entusiasmada do Bloco e de Sócrates ao regime do "amigo" Chávez.
A Venezuela tem possivelmente as maiores reservas de petróleo do mundo. Porventura maiores do que as da Arábia Saudita. E tem menos de 32 milhões de habitantes. Como podem faltar bens essenciais nas prateleiras dos mercados? Como pode haver tanta pobreza e exclusão?
A Venezuela é, na América Latina, um dos países com uma das mais antigas e ininterruptas experiências de vivência democrática, tendo chegado a contar com um sistema político pluralista onde os principais partidos se reivindicavam da democracia cristã e da social democracia. Como foi possível chegar à actual deriva autoritária, quase ditatorial? Como é possível tantos dias de protestos gigantescos e de enormes greves e, ao mesmo tempo, o poder não dar qualquer sinal de ceder à vontade popular?
Estas interrogações seriam suficientes para duvidarmos da bondade do governo de Nicolás Maduro. Mais: deveriam levar-nos a questionar toda a herança do “chavismo”, que dura desde 1999. Não deveria ter sido necessário o espectáculo grotesco da farsa eleitoral do passado fim-de-semana – manipulação da representação proporcional, voto sob coacção, fraude descarada na contabilização dos votos, criação de um sistema que, à partida, garantia quase um terço dos lugares na Assembleia Constituinte a grupos controlados pelo regime – para finalmente separar águas e se pensar em sanções. Mas foi isso que aconteceu.
Quem esteve atento à forma como em Portugal quase todos se relacionaram com a Venezuela de Chávez e Maduro sabe que o actual isolamento do PCP, a única força política que insiste em defender o regime, é que é a novidade. A verdade, a triste verdade, é que ao longo de quase duas décadas Hugo Chávez foi recebido em Portugal como “um amigo” e, à esquerda, o chavismo era visto por quase todos como um exemplo a seguir. Até à direita teve as visitas respeitosas de Paulo Portas. Hoje quase só o PCP considera que as denúncias da imprensa e das organizações de direitos civis não passam de “uma das mais miseráveis campanhas de patranhas da comunicação social ao serviço do grande capital e do imperialismo” ou que os manifestantes mortos são produto da “violência fascista” desses mesmos manifestantes. Mas eu recordo-me bem de, há uma dúzia de anos, ter sido quase linchado num debate sobre o chavismo em que participei na Associação 25 de Abril (foi Vasco Lourenço que se impôs à assembleia e permitiu que eu falasse). E quem lá estava não era o PCP (que até desconfiava do populismo de Hugo Chávez, pouco ortodoxo e pouco marxista para o gosto dos comunistas) ou Boaventura Sousa Santos – quem lá estava era sobretudo a nossa “esquerda festiva” e muito pouco tolerante.
Por isso devo dizer que aprecio mais a frontalidade do sociólogo de Coimbra quando este sai em defesa do regime de Nicolás Maduro do que a hipocrisia do Bloco de Esquerda, que agora se apressa a gritar “vade retro satanás”. É que Joana Mortágua, ao escrever que “a esquerda de que faço parte nunca foi ambígua sobre a condenação de regimes que oprimem o povo e sufocam a democracia”, nem repara na contradição em que cai, pois algumas linhas antes garantira que a sua actual revolta resultava de o chavismo ter passado “de projeto do povo a ditadura de caudilho” quando, na verdade, o que o chavismo perdeu foi o seu caudilho, pois há muito que deixara de ser uma democracia respeitadora dos direitos civis.
Mas antes de irmos a essa discussão vale a pena ocuparmo-nos um pouco da grande mistificação alimentada por gente como o “cientista social” Boaventura. Tomemos esta passagem do seu quase manifesto em defesa do chavismo e do “madurismo”: “As conquistas sociais das últimas duas décadas são indiscutíveis. Para o provar basta consultar o relatório da ONU de 2016 sobre a evolução do índice de desenvolvimento humano. (…) De 1990 a 2015, o IDH da Venezuela aumentou de 0.634 para 0.767, um aumento de 20.9%”.
O que me chamou a atenção nesta passagem foi a escolha do ano de referência: porquê 1990 se Hugo Chávez só chegou ao poder em 1999? Uma parte da resposta está na frequência com que esses relatórios da ONU eram produzidos nessa época: há um para 1990 e outro para 2000. Ou seja, não temos nenhum para 1999, o “ano Chávez”. Mas é uma explicação insuficiente, pois há outra bem melhor: se tomarmos o IDH de 2000 verificamos que ele foi de 0.775 e que a Venezuela estava então no lugar 69 do ranking. Ou seja, um ano depois de chegar ao poder e numa altura em que dificilmente se poderia considerar o efeito da sua governação num índice que integra, por exemplo, a literacia de toda a população, algo que não se muda de um ano para o outro, o IDH registado foi superior ao contabilizado depois de 15 anos de chavismo, 0.775 contra 0.767. Mais: a Venezuela caiu nestes 15 anos do lugar 69 para o lugar 71. Não é muito, mas é seguramente uma “grande conquista social”.
Todos sabemos que os números podem ser “torturados”, arte em que os políticos são mestres, mas aqui estamos a falar de um texto de um “cientista social” que, para mais, já se encontra também reproduzido no site de uma instituição científica do Estado, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Mesmo desmontando esta tosca falácia de Boaventura Sousa Santos não cairei na armadilha de defender que não houve evolução social na Venezuela nestas últimas duas décadas. Houve, mas é necessário saber a que custo e com que consequências para o futuro do país e, sobretudo, para o futuro daqueles que estão mais desprotegidos.
Primeiro que tudo: a Venezuela não é nem nunca foi o “regime do povo” que nos venderam anos a fio. Tomemos, por exemplo, um indicador sempre muito apreciado pela esquerda que venerou e ainda venera Hugo Chávez: o coeficiente de Gini, uma das melhores formas de medir o grau de desigualdade existente numa sociedade. Em 2013 esse coeficiente era de 44,8, o que significa que era bem mais elevado, logo bem pior, do que o medido em Portugal (34,5) nesse tempo em que estávamos no auge da crise e, na linguagem da mesma esquerda, sofríamos as consequência de um desalmado neoliberalismo. Qual era o coeficiente de Gini em 2000 na Venezuela? 42,0. Ou seja, ao fim de 15 anos de chavismo o país está mais desigual.
Contudo, por uma questão de honestidade intelectual, é necessário reconhecer que neste intervalo de tempo o coeficiente de Gini diminuiu, registando um mínimo de 39,0 em 2011. Porque é que se começou a agravar depois dessa altura? A resposta é simples: o “milagre social” do chavismo, a “distribuição de renda” promovida pelo bolivarianismo, só foi possível enquanto o rendimento do petróleo gerou receitas suficientes para pagar tudo e mais alguma coisa. Faltavam médicos? Oferecia-se petróleo a preço de amigo a uma Cuba esfomeada e recebiam-se em troca legiões de médicos. Era preciso erguer bairros sociais? Telefonava-se ao amigo Sócrates e este despachava o Grupo Lena.
O método foi sempre o mesmo: em vez de aproveitar o rendimento de um petróleo com preços inflaccionados para construir uma economia sustentável, distribuíram-se esses milhões e milhões por aquela parte da população que acabaria por reeleger e reeleger um Hugo Chávez que, entretanto, retirara da Constituição o princípio da limitação de mandatos. Muitas pessoas saíram da pobreza? Sim, saíram. Mas mal os preços do petróleo começaram a cair, a pobreza e a desigualdade regressaram em força. Afinal de contas Chávez morreu em 2013 – e é precisamente de 2013 o coeficiente de Gini que referi atrás. Os males não chegaram com Nicolás Maduro, já lá estavam com Chávez. O problema não foi, ao contrário do que escreveu Boaventura, “liderança carismática de Chávez” não ter sucessor – o problema foi o modelo de Chávez não ter saída quando se acabou a ilusão dos petrodólares.
Pior: o chavismo não falhou apenas por não ter criado uma economia menos dependente da renda do petróleo, falhou porque destruiu a economia que existia, combateu como pode os “capitalistas” e fez da Venezuela, de acordo com a The Heritage Foundation e Wall Street Journal, o país tem o pior regime do mundo no que respeita à protecção dos direitos de propriedade (um registo de 5,0 numa escala de 100). Ora quando os direitos de propriedade não estão protegidos ninguém investe, os capitais fogem e só fica quem, como muitos comerciantes portugueses, não tem mesmo para onde ir, mesmo assim correndo o risco de ser preso por especulação apenas por ir ajustando os seus preços à hiperinflacção (que chegou aos 700%).
Mais: se considerarmos o chamado “índice de miséria”, verificamos que a Venuzuela ocupa o último lugar entre 89 países (dados de 2013). Este não é um índice de pobreza ou riqueza, antes um indicador que integra variáveis como a inflação, as taxas de juro, o desemprego e o crescimento económico, reflectindo por isso sobretudo a percepção de ter pela frente um futuro difícil – e ninguém duvida como isso foi verdade de 2013 para cá, neste tempo de Nicolás Maduro onde até a comida está racionada
Não é por isso pois chegar ao que é obsceno, como os excessos parisienses da família de Maduro (já aqui recordados por Maria João Marques), ou o nascimento de uma nova e próspera oligarquia chavista no mundo dos negócios (excelente a reportagem do Financial Times sobre esta nova “burguesia bolivariana”), ou ainda às ligações perigosas do “amigo Chávez” com José Sócrates e Ricardo Salgado, pois há pistas do dinheiro ainda por revelar – basta ficar no que toda a gente sabe para perceber que só um supremo desprezo pela democracia justifica as dores do PCP e os amores de Boaventura.
Mas então e o Bloco? E aqueles sectores do PS que andaram de braço dado com o comandante? E até de Paulo Portas, que não desdenhou negócios venezuelanos? E então a posição do governo português, mais renitente à aplicação de sanções, mesmo depois de alinhar com a União Europeia no não reconhecimento da eleição fraudulenta para a Assembleia Constituinte?
Deixemos de lado as razões de Estado – que são atendíveis e, no nosso caso, não podem ignorar o destino de centenas de milhar de portugueses que vivem na Venezuela – para irmos apenas ao que há muito era visível mas muitos não quiseram ver: a deriva autoritária do chavismo.
É curioso ouvir Catarina Martins dizer que “o BE nunca confundiu a democracia com o acto formal de voto” não interessa apenas recordar como o partido elogiava Chávez e a sua “luta contra o imperialismo e o FMI”, interessa sublinhar que ela, como muitos socialistas portugueses, ou não sabem o que é uma democracia, ou fizeram de conta que não perceberam o que há muitos, muitos anos se estava a passar na Venezuela.
E o que se estava a passar na Venezuela era a transição de uma democracia plena, onde eleições justas coexistem com limitações ao poder executivo, protecção da liberdade e do pluralismo e ainda mecanismos de pesos e contrapesas, para aquilo que os estudiosos designam como regimes híbridos, onde continuam a realizar-se eleições mas tudo o resto vai desaparecendo, sendo substituído por práticas autoritárias. É nesses regimes que deixa de ser possível cumprir o critério primeiro para saber se uma democracia é mesmo uma democracia, que não é haver eleições livres e justas, é sabermos que os governos podem ser substituídos de forma pacífica, na célebre definição de Karl Popper. Ora aquilo que Chávez fez e Maduro prosseguiu foi criar um regime que permitisse a sua eternização no poder – enquanto houve dinheiro do petróleo comprando com ele a popularidade, quando deixou de haver dinheiro do petróleo, recorrendo à repressão pura e dura. Esse processo de “legalismo autocrático” está muito bem descrito por um estudioso da realidade venezuelana, Javier Corrales, que nos mostra como tudo começou logo em 1999, com uma nova Constituição desenhada à medida de Chávez e que aumentava os seus poderes. Ou como tudo prosseguiu com a mudança de natureza do poder judicial através da nomeação de juízes favoráveis ao regime: basta pensar que das 45.474 decisões tomadas pelo Supremo Tribunal entre 2005 e 2015 nenhuma foi desfavorável ao regime. Se a isto acrescentarmos os ataques à liberdade de informação, incluindo as “conversas” de horas de Chávez a ocupar todos os canais de televisões, ou as dúvidas sobre a ocorrência de fraudes nalgumas disputas eleitorais mais apertadas, temos uma pequena ideia do que foi a deriva de um regime que Sócrates bajulava, o Bloco aplaudia e a quem até Portas pedia uns tostões.
Não tenhamos pois dúvidas ou hesitações, como o nosso governo parece continuar a ter. Neste momento o caminho a seguir é aplicar sanções aos líderes do chavismo, como Maduro à cabeça, congelando as suas contas. Como já disseo insuspeito Felipe Gonzalez, que depois de comparar a actual situação à da “democracia orgânica de Franco”, acrescentou que os dirigentes chavistas desviaram milhões para o estrangeiro não passando de “revolucionários de pacotilha que traíram o seu país e levaram para o exterior o seu dinheiro à custa da fome dos venezuelanos”.
Chega, não acham?

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