Portugal é para os
portugueses, sobretudo portugueses da utilidade do sr. Xula e do dr. Medina.
Logo que o turismo acabe a aventura da nação valente (e imortal) não terá
limites, fora os da bancarrota
Portugal já era
fortíssimo no turismo de tédio, no qual se contam rotundas, ou se passa horas
nas filas dos supermercados, ou simplesmente nos deitamos na praia a atribuir
formas reconhecíveis às nuvens (“Olha, aquela é igualzinha a um helicóptero
Kamov. E aquela parece mesmo o prof. Marcelo a posar para uma ‘selfie’ com a
selecção nacional de canoagem feminina”). Agora, o país aposta (como sucede
sempre que há hipótese de se ficar sem um tostão, somos peritos em “apostar”)
no turismo de aventura.
A Wikipedia associa o
turismo de aventura a “algo diferente, ao desafio, a certo risco capaz de
proporcionar a sensação de prazer, liberdade e superação pessoal, que varia de
acordo com a expectativa de cada pessoa e do nível de dificuldade de cada
atividade”. A Wikipedia não refere a valiosa contribuição nacional para o
sector. A vontade de oferecer emoções intensas aos forasteiros teve início há
muito, embora a uma escala modesta. Historicamente, o turismo de aventura
limitava-se, por exemplo, aos clientes dos taxistas que pediam 72 euros por uma
viagem da Portela ao Chiado. Na última ocasião em que estive de férias no
Algarve, na pouco saudosa Primavera de 1995, consegui descobrir um café que a
cada manhã aumentava o preço do café e do pastel de nata, numa vertigem
inflacionária sem rival desde a Alemanha de 1933 e a Venezuela de 2017. Hoje, o
conceito actualiza-se e, dado que beneficia de circunstâncias particularmente
favoráveis, alastra-se.
O que não faltam por cá
são indivíduos e entidades empenhados em submeter o turista a desafios únicos e
emocionantes, a começar pelas demoras na área de chegadas dos aeroportos. Esta
semana, o Observador e o site “New In Town” contaram a história do Made in
Correeiros, o restaurante lisboeta que cobra 50 euros por garrafa de Cartuxa,
120 por um bacalhau com natas e 250 por um “misto de marisco”. É “misto” porque
um quinto são frutos do mar e os quatro quintos restantes uma burla das
antigas. Ou, para sermos exactos, das modernas. O Observador acrescenta que o
proprietário da casa é um carteirista reformado e se chama, obviamente, Xula.
Das duas grandes teses
vigentes acerca do turismo de massas, a primeira envolve a tal ideia de
aventura e consiste justamente no que os académicos credenciados designam por
“xulanço” (os puristas optam pelo “ch”). Resumindo para leigos, implica apanhar
o “camone” desprevenido e sacar-lhe a maior quantidade de euros possível no
menor período possível. É uma actividade reservada a instituições particulares
como o sr. Xula ou públicas como a dona Câmara de Lisboa, que diariamente
fabrica novas taxas e taxinhas que estimulam a adrenalina do turista e garantem
que, a não ser nos casos de masoquismo terminal, o infeliz não regressa a
semelhante choldra.
É aqui que a primeira
tese sobre o turismo se encontra, num radioso caldo de portugalidade, com a
segunda principal corrente de pensamento na matéria. Uma enxota o visitante
porque o quer roubar. A outra quer enxotá-lo de qualquer maneira. Esta, o
“movimento” de “defesa” do comércio “tradicional”, dos bairros “típicos” e dos
sonhos da irmã de Paulo Portas, é representada pelo tipo de gente que entra em
pânico mal vê alguém cometer a heresia de ganhar uns trocos que não sejam
atribuídos pelo Estado. É o momento de introduzir um parêntesis e uma homenagem
à Catalunha.
Em Barcelona, uma espécie
de laboratório de inúmeras demências contemporâneas, tornou-se pelos vistos
costume atirar pedras a autocarros de turistas, em protesto contra o excesso
destes e, cito o “Expresso”, a “ameaça” à “qualidade de vida”. Os autóctones
furiosos deviam erguer-me uma estátua: por motivos diversos, nunca me ocorreu
maçá-los com a minha presença e, salvo um azar enorme, palpita-me que tal
afronta jamais acontecerá. Na minha lista de paraísos a visitar, Barcelona
situa-se ainda abaixo de Cabul, da Eritreia e do Chapitô. O pormenor não impede
que as maluquices locais inspirem cidades distantes: no início do mês, a
autarquia de Lisboa proibiu a circulação de autocarros turísticos na dita “zona
histórica”.
É uma alternativa subtil
aos apedrejamentos. É também uma medida de protecção de referida “qualidade de
vida”, para que a capital e o país retornem à época em que vivíamos confortável
e exclusivamente do produto do nosso labor, sem o dinheiro sujo e a balbúrdia
que os estrangeiros largam por aí. Os estrangeiros são uma praga, que urge
controlar na teoria e erradicar na prática. Xenofobia? Xenofobia é, sei lá,
contestar muçulmanos que fogem do islão e desejam, assaz legitimamente,
reproduzir o islão entre nós. Escorraçar espanhóis, alemães, americanos,
coreanos e ingleses interessados em comprar-nos bens e serviços, de preferência
após assaltá-los à mão desarmada, é mero civismo. Portugal é para os
portugueses, sobretudo portugueses da utilidade do sr. Xula e do dr. Medina.
Logo que o turismo acabe, a aventura da nação valente (e imortal) não terá
limites, excepto os da bancarrota.
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