sábado, 29 de julho de 2017

O horrível “aproveitamento dos mortos”




João Miguel Tavares - Público

Uma das poucas boas notícias no meio deste terrível Verão tem sido o papel que a comunicação social tem desempenhado desde a tragédia de Pedrógão. Há vários meios que têm razões para estar orgulhosos do trabalho que têm feito — o PÚBLICO é um deles —, e eu sinto-me tanto mais à-vontade para dizer isto quanto sou altamente crítico da capacidade dos jornais nacionais para desempenharem o seu papel de watchdogs e actuarem como efectivo contrapeso num país onde o Estado detém demasiado poder e os meios de comunicação se encontram, por razões económicas, profundamente fragilizados.
É obra! Todos socialistas. E os que não eram,
 passaram a ser.
Não é de admirar que os parvos sejam
manipulados!
A comunicação social portuguesa tem muito pouco de que se orgulhar na última década, e nalguns momentos foi até vergonhosamente cúmplice daquilo que aconteceu ao país — sim, estou a falar dos anos socráticos. Felizmente, o pós-Pedrógão tem sido outra coisa. Pela sua actuação e pela sua resiliência, os jornais têm obrigado as instituições públicas a serem mais transparentes, e têm exposto as fragilidades e contradições do Governo, exigindo mais competência ao poder executivo e colocando-se do lado das vítimas e dos cidadãos que reclamam o direito a serem informados sem subterfúgios, leis da rolha ou habilidades burocráticas. A divulgação da lista dos mortos de Pedrógão por parte do Ministério Público, e a mudança de atitude por parte do Governo depois do “está tudo esclarecido” de António Costa, devem-se ao papel da comunicação social, que não se sentiu intimidada por aqueles que a acusaram de “populismo” ou de “aproveitamento político”. Como já referi várias vezes, este país é especialista em invocar os grandes princípios para fugir às mais básicas responsabilidades na prestação de contas — os anos socráticos, mais uma vez, servem como excelente demostração desta táctica rasteira.
Agora que o número de mortos evoluiu de 64 para 64+2, há quem nos venha dizer que o Governo e os seus apoiantes é que tinham razão, e que assim se demonstrou que ninguém estava a mentir, nem a esconder vítimas. Eu próprio fui acusado de ter escrito um artigo “deplorável” na terça-feira, e de ser um dos que andam a promover a utilização “sem vergonha” dos mortos para obter dividendos políticos. Não me lixem, senhores. Quem isto afirma comete mais uma vez o prodígio de não perceber coisa alguma.
O importante não é sequer o facto de o número de mortos ter efectivamente crescido, e de se ter provado o rigor da notícia do Expresso quanto à 65.ª vítima. O importante é que isto nunca foi uma questão de números, mas de básica transparência no acesso à informação. É obviamente inaceitável num país civilizado considerar o nome de quem morre numa tragédia natural como informação privilegiada ou ao abrigo do segredo de justiça. Aliás, era tão fundamental, mas tão fundamental, que a lista se mantivesse secreta, e tão crucial, mas tão crucial, manter todos os poderes minuciosamente separados neste tema, que a lista dos mortos foi divulgada pela Procuradoria-Geral da República assim que a temperatura começou a atingir níveis proibitivos ali para os lados de São Bento.
Se alguém falhou aqui — e muito — foi a política de comunicação do Governo e das instituições do Estado, que através da costumeira falta de transparência alimentaram as teorias da conspiração. Os jornais — e os partidos da oposição — fizeram o seu papel. E conseguiram, pela sua insistência, obter com provas a verdade dos factos. Se é isto o populismo, então eu quero continuar a ser populista.

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