quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Sobre Soares



Alberto Gonçalves – Revista Sábado
Janeiro 17, 2017

Entrevistei uma vez Mário Soares. Foi em 2006, durante a última campanha. Nesse mesmo dia, fora publicado um artigo não excessivamente laudatório que escrevi sobre o homem. Mal cheguei ao local da entrevista, o dr. Soares voltou-se para o sujeito que o acompanhava (talvez Vítor Ramalho) e, sem subtileza, perguntou baixinho se eu era o "tal". Confirmada a identidade, aplicou-me uma ligeira rispidez. Ocasionalmente, distraía-se e tornava-se quase afável. Não conheci, pois, o dr. Soares colérico ou jovial de que rezam as lendas. Não conheci o dr. Soares, ponto.
Conto este irrelevantíssimo episódio apenas para cumprir os critérios mínimos aparentemente exigidos na hora da sua morte, momento aproveitado por incontáveis criaturas para exibirem intimidade com o falecido. De resto, não consigo integrar o coro de elogios incondicionais com que as criaturas nos brindaram. Pelos vistos, uma considerável percentagem dos meus compatriotas apenas respira, pensa, corre, dança e repete banalidades em público graças ao dr. Soares. Curiosamente, muitos dos que lhe agradecem a liberdade apreciam hoje a influência que notórios inimigos da liberdade exercem sobre o País.
Por outro lado, também não sei se percebo o puro ódio que o dr. Soares despertava em tanta gente (não, não é só o rancor de "retornados" e comunistas). Quando, ainda antes do óbito, o prof. Marcelo garantiu que "todos os portugueses" acompanhavam "com carinho a situação do dr. Soares", o prof. Marcelo tipicamente acertou ao lado. Depois do óbito, pouco depois, os minutos de silêncio que precederam dois jogos de futebol viram-se interrompidos por abundantes insultos e assobios, espécie de contraponto aos louvores oficiosos. Em transmissões posteriores, as televisões baixaram prudentemente o som.
Sou incapaz de tamanhos fervores. Para mim, o dr. Soares não criou o mundo nem acabou com ele. É qualquer coisa no meio. Iniciou-se no estalinismo caseiro, mas combateu o salazarismo à revelia do PCP. Resistiu em 1975 ao avanço das forças antidemocráticas, mas ignoro se o fez por convicção ou por interesse. Entregou-nos, em dose dupla, ao FMI, mas aproximou-nos da "Europa". Derrotou o prof. Freitas, mas não tardou a reabilitá-lo junto com algum do pior entulho pátrio. Exerceu uma presidência ecuménica na superfície, mas conspiradora na essência. Ganhou fama de tolerante, mas cedeu a enormes baixezas para derrotar adversários ou descartar-se de compinchas incómodos. Mostrou uma grandeza natural, mas que frequentemente se confundia com prepotência. Isto no século XX, de que, à nossa ridícula escala, constituiu figura maior.
No século XXI, o dr. Soares limitou-se a passear devoção por ditadores e figuras particularmente sinistras, a sujeitar-se a enxovalhos eleitorais, a participar em encontros de alucinados contra a troika e um governo eleito, a visitar certos presidiários de Évora, a abominar o "neoliberalismo" e de facto os regimes ocidentais. Transformado num anacronismo "revolucionário", o dr. Soares deixou de ser contraditório e, em suma, interessante. Passou os últimos anos a parecer negar-se a si mesmo. A História dirá se negou o suficiente. Ou se negou de todo.

O bom
Pão e sobretudo circo
O rating da única agência que ainda não nos atirou ao lixo passou os 4%, valor limite para o sossego da DBRS. No dia seguinte, que eu visse, um único jornal diário (em papel) deu ao facto (discretas) honras de capa. Nas televisões, imagens em contínuo de um rapaz a levar porrada dos colegas e "debates" sobre arbitragens da bola. Não digo que esteja ansioso pelo quarto "resgate", mas mal posso esperar por conhecer os assuntos prioritários com que a maioria dos media nos distrairá então. Só não se aceitam apostas porque não haverá dinheiro.

O mau
Professores pasmados
O prof. Marcelo felicitou Cuba pelo aniversário da revolução. Porque é um marxista dissimulado? Nada disso. Porque o prof. Marcelo felicita tudo o que se mexe e, no caso de falecidos avulsos, o que não se mexe também: ditaduras e democracias, governos sofríveis e desastrosos, boas e aterradoras personalidades, ginjinhas saborosas e intragáveis, etc. Em Belém, não há sombra de critério. Talvez, em breve, os portugueses comecem a perguntar-se se há ali sombra de utilidade. Outro professor pasmado, o dr. Pangloss, acabou mal.

O vilão
Um indiano errante
Para o PM da Índia, o dr. Costa, de visita, "é um exemplo do dinamismo da nossa diáspora". A sério? O estereótipo do emigrante indiano oscila, de acordo com as circunstâncias, entre o vendedor de flores e o médico. Em ambos os casos, é gente trabalhadora e em princípio íntegra. Os trabalhos do dr. Costa, cuja integridade me dispenso de comentar, resumem-se a uma longa lista de cargos partidários ou daí derivados. Se um currículo assim fosse exemplar da diáspora, há muito que os vistos a cidadãos indianos seriam universalmente recusados.

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