1/12/2016
Tal como uma
andorinha não faz a primavera, dois homens competentes – António Domingues e
Paulo Macedo – não garantem só por si que o ADN do sistema deixa de ser o que
é. Como se tem visto até agora.
Foi na sexta-feira
passada, poucos terão reparado. Numa das muitas entrevistas que deu a propósito
do primeiro aniversário do seu Governo, António Costa repisou a ideia de que
todos os problemas do sistema financeiro são culpa do anterior Governo, e
concretizou: “Por sua responsabilidade, destruiu um banco como o Banco Espírito
Santo”.
Escusam de esfregar
os olhos para ver que aquilo que leram foi mesmo o que António Costa disse: não
só foi, como não o desmentiu nem corrigiu (e recomendo que leiam oFact Check que
o Observador realizou logo nesse dia). Ou seja, num daqueles momentos raros em
que deixou escapar o que realmente lhe vai no fundo do coração, o
primeiro-ministro disse-nos que a destruição do BES não foi obra de Ricardo
Salgado e da restante liderança do Grupo Espírito Santo, não decorreu de actos
de gestão não apenas inconscientes como provavelmente criminosos e que estão
por isso a ser alvo de investigação judicial. Não, nada disso: para António
Costa foi Passos Coelho que destrui o BES. Como? Não explica. Mas o que sabemos
é que Passos Coelho apenas teve uma intervenção decisiva nesse processo: no
momento em que disse não a Ricardo Salgado quando este lhe pediu para
pressionar a Caixa Geral de Depósitos a fazer um empréstimo de milhares de
milhões ao GES – um empréstimo como aquele que levou para o fundo a Portugal Telecom.
Já o escrevi preto
no branco e volto a repeti-lo: se Passos Coelho tivesse feito tudo mal nos seus
quatro anos de governação, aquele “não” ao antigo “dono disto tudo” teria sido suficiente
para eu lhe estar agradecido. Agora é
altura de dizer, também preto no branco: aquela frase de António Costa é
aterradora pelo que revela sobre os seus instintos como governante, e é também
profundamente reveladora sobre o porquê de o processo da Caixa Geral de
Depósitos estar submerso na trapalhada em que está.
Ter “salvo” o BES
para este salvar o GES, pelo que sabemos hoje sobre o imenso buraco do Grupo
Espírito Santo, teria sido fatal para a Caixa (como foi para a PT) e teria
custado aos contribuintes uma quantidade indefinida de “BPN’s”. Ter “salvo” o
BES teria representado também prosseguir com o tipo de interferências políticas
que, ao longo de décadas mas com o seu apogeu nos anos de José Sócrates,
fizeram com que a Caixa desse empréstimos ruinosos e, cúmulo dos cúmulos,
perdesse centenas de milhões em empréstimos destinados a permitir um assalto ao
poder num banco privado, o BCP, sob o alto patrocínio do “animal feroz”.
O que sabemos dos
resultados da comissão de inquérito parlamentar ao caso BES (cujas conclusões o
OS votou favoravelmente), o que já começámos a perceber da comissão de
inquérito à Caixa Geral de Depósitos e aquilo que podemos ler em livros
recentes e bem investigados como A Vida e Morte dos Nossos Bancos
de Helena Garrido não permite senão uma
leitura: nos anos que precederam o pedido de ajuda externa e a intervenção da
troika bancários, empresários e políticos envolveram-se numa “grande farra de
dívida” que teve o seu paroxismo nos tempos de negação da realidade de 2009,
2010 e 2011.
Mais: quando se
negociou o resgate com a troika (e quem o negociou ainda foi um governo do PS,
o de Sócrates) não se conseguiu um pacote financeiro que permitisse limpar
definitivamente o nosso sistema financeiro (como bem se explica nesse mesmo
livro, pp. 81 a 91). O resultado (pág. 98) foi que “o único modelo de abordagem
do problema que ficou disponível foi o de ir limpando as perdas à medida que
elas iam aparecendo”.
No que diz respeito
à Caixa Geral de Depósitos, os últimos anos (como se pode ler a pp. 157 a 166)
foram em boa parte ocupados a afastar o banco público da multiplicidade de
negócios ruinosos para que fora empurrado por sucessivos governos, a resistir a
pressões para entrar em novas megalomanias (por exemplo: a PT e Ricardo Salgado
tentaram tudo para que a Caixa entrasse, enterrando mais umas centenas de
milhões, no desastre da fusão com a brasileira OI, o que só não aconteceu
porque a administração de então se opôs e Pedro Passos Coelho também disse não,
pp. 157 a 159). No final o balanço de Helena Garrido é claro: “estes últimos
anos da Caixa interromperam uma década e meia de captura do banco pelos
interesses políticos dos governos que protegeram empresários e negócios numa
lógica de poder”.
Esta análise é em
tudo contraditória com o discurso político do actual Governo quando surgiu a
necessidade de mobilizar mais de 4 mil milhões de dinheiro público para a CGD.
Este manteve-se fiel ao guião de que tudo o que estava mal era fruto dos
últimos quatro anos, um guião que, percebemos agora, corresponde ao pensamento
profundo de António Costa, ao que realmente sente o PS e está na massa do
sangue dos socialistas: a banca é um terreno onde os governos devem intervir,
tal como bancos amigos – como foi durante muitos anos o banco de Ricardo
Salgado – devem ser salvos, custe isso o que custar aos contribuintes.
Mais: ao optar por
uma gestão política confrontacional do dossier da Caixa, o Governo cortou
deliberadamente as pontes para qualquer solução que pudesse ter um apoio mais
alargado. Talvez o sinal mais claro do que estava para vir foi a intervenção,
no início de Julho, de Mário Centeno na Comissão de Economia e Finanças da
Assembleia quando falou de um “desvio de três mil milhões” na CGD. O tom da sua
intervenção foi tão incendiário, a recusa a prestar esclarecimentos tão
radical, que depressa o “desvio” se transformou em “buraco” e o alarme
propagou-se como fogo numa pradaria ressequida, levando a que fossem recebidos
no Banco de Portugal telefonemas alarmados de outros bancos centrais a
perguntar o que se passava. Confrontado com a gravidade das suas declarações
pela oposição, Centeno não teve pejo em dizer que se tratava de uma declaração
“política”, sem perceber que estava a lidar com matéria explosiva.
É neste quadro que
tudo o que tem a ver com a Caixa passa a ser tratado também pela oposição, e
pelo PSD em particular, como arma de arremesso política, até porque a sucessão
de inabilidades e disparates que acompanharam o processo de escolha e nomeação
da nova administração lhe proporcionaram essa oportunidade.
Agora que António
Domingues acabou por se demitir – e só tenho pena que tenha levado tanto tempo
a perceber o cinismo e a duplicidade daqueles que o desafiaram para a CGD, tal
como só lamento o grau de hipocrisia de quem sabia há muitos meses
das condições colocadas pelo gestor (António Costa) e, mal percebeu que o tema
era explosivo, tirou o corpo fora fingindo que nada era com ele –, é curioso
ver lamentos sobre a “traição” do Bloco de Esquerda, como os de Paulo Trigo Pereira.
Na verdade as
dificuldades agora existentes não deviam surpreender ninguém. A estratégia do
Governo e de António Costa foi sempre a de ostracizar e demonizar a oposição,
acreditando porventura que à sua esquerda não lhe levantariam problemas de
maior. Devia ter percebido, logo em Dezembro do ano passado, com o Banif, que
não seria assim. Aprendeu agora com a Caixa, e falta saber o que isso custará a
nós todos.
Não deve de resto
alimentar ilusões. A sombra tutelar do Bloco, Francisco Louçã, já veio dizer que nas decisões sobre a banca o Governo não
deve contar com seguidismo, pois elas não estão abrangidas pelos compromissos
da maioria, sendo necessários “novos acordos” não só relativos à CGD, como ao
Novo Banco (que o Bloco quer nacionalizar) e ao chamado “banco mau”. Ou seja,
anunciam-se novas divisões no bloco de apoio ao Governo no que respeita ao
sistema financeiro, dossier que continua a ser um dos mais críticos da
governação.
Será de resto
curioso seguir os episódios dos próximos capítulos se se confirmar que é Paulo Macedo o escolhido para presidente da Caixa. Vão Catarina e
Jerónimo aceitar de bom grado uma figura importante da anterior maioria, o
ministro que acusaram quatro anos a fio de estar a destruir o Serviço Nacional
de Saúde? E poderá Costa manter o seu registo confrontacional com PSD e CDS no
dossier Caixa quando escolhe para a dirigir um ex-ministro da anterior maioria?
Já todos vimos
porcos a andar de bicicleta e muito sapo a ser engolido, mas mais do que nos
divertirmos com os futuros números deste circo em que estamos mergulhados, é
bom tomarmos consciência de duas coisas, ambas centrais para avaliar o que se
vier a passar neste processo. A primeira é que a reforma do sistema financeiro
devia estar a ser feita na base de um grande consenso entre os partidos
europeístas, e não com base nos equilibrismos necessários para manter o apoio
de partidos (PCP e Bloco) que têm deste sistema uma visão em tudo oposta às
regras europeias e ao funcionamento de uma economia de mercado. A segunda é que
essa reforma está a ser dirigida por alguém que não foi capaz de esconder a sua
nostalgia pelo tempo em que o banco de Ricardo Salgado medrava à custa de
cumplicidades governamentais e fraudes internacionais.
Por mim, este é um
quadro não dá para dormir descansado. Tal como uma andorinha não faz a
primavera, dois homens competentes – António Domingues e Paulo Macedo – não
garantem só por si que o ADN do sistema deixa de ser o que é. Como tudo o que
se passou nos últimos meses tem vindo a demonstrar à exaustão.
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