Entrevista: Fernanda
Cachão / J. Rentes de Carvalho
1-Em sua opinião por
que é que este livro não foi bem recebido na Holanda, como conta logo no
prefácio? Diz que recebeu pouco menos de vinte euros de direitos de autor…
Um livro destes,
contracorrente, só por milagre teria boas críticas ou seria bem aceite, mas
também não contei com a atitude do editor, muito cauteloso em não desagradar à
multidão do politicamente correcto. Publicou-o porque havia contrato, mas
também fez o possível para não o distribuir. Na Holanda continua a não ser
avisado, nem de bom tom, dizer que o rei vai nu.
2-Que livro é este?
Se posso parafrasear
Pessoa, é o livro do meu desassossego. Em relação à sociedade, à
manipulação, ao
desdém que voto aos políticos em geral, a toda a espécie de profetas que
insistem em nos mostrar o bom caminho. Desassossego, também, pela influência
das redes sociais e o ambiente que criam, a facilidade com que nelas
se vitimiza ou promove a herói um qualquer pateta; de fazer de conta que é
possível ter direitos sem deveres ou normas; que basta exigir.
3-Não poderia antes
chamar-se ‘A ira de Rentes sobre a vida de um modo geral’?
Creio que não,
porque pessoalmente há muito estou de bem com a vida. A minha ira, e acredite
que é genuína, vai para a mentira, o descaro, a manipulação, a trafulhice, a
cara de pau com que os políticos e os meios de informação aproveitam e abusam
da ingenuidade dos cidadãos, nem sequer os tratando como imbecis, mas atrasados
mentais, as "deploráveis criaturas" de que agora se fala.
4-Ainda assim
escreve que se pudesse renascer, escolhia ser holandês. Porquê?
Porque a Holanda é
um país superiormente organizado, o cidadão sabe-se realmente protegido pela
lei, o nível de corrupção é muito baixo, vive-se nele sem necessidade de pedir
favores, meter cunhas, pagar luvas, ou ter de falar com o doutor Fulano para
que arranje vaga no hospital.
5-Geert Wilders, do
Partido da Liberdade holandês (PVV), saudou a “revolução” na América que
recuperou “a sua soberania e identidade” depois da eleição de Donald Trump. “O
que a América pode fazer, nós também podemos”, prometeu Wilders cujo partido
está bem posicionado nas sondagens para as eleições de Março na Holanda.
O que acha que pode acontecer nas próximas eleições? E à Europa depois das
eleições americanas?
O partido de Geert
Wilders de certeza vai obter excelente resultado nas próximas eleições, mas
defronta um colossal obstáculo: só tem eleitores, não tem quadros. A força do
politicamente correcto na Holanda é tal, que quem se arrisca a aceitar uma
posição no PVV não escapa a ser social e politicamente ostracizado. De modo que
a solução será que o PVV participe numa coligação, dando apoio parlamentar ao
partido vencedor.
É cedo para falarmos
da Europa, mas o avanço do Cinco Estrelas na Itália, e a apressada "simpatia"
que alguns países europeus demonstram pela Rússia, de certeza vão trazer
interessantes mudanças e dificultar o discurso dos eurocratas.
6-Que legado deixou
no país o assassinato há dez anos do cineasta Theo Van Gogh por um holandês de
origem marroquina, Mohammed Bouyeri, que atirou oito vezes no estômago e depois
o decapitou?
É triste dizer que
fora dos seus amigos e dos quantos que admirávamos a sua coragem, e lhe
desculpávamos a truculência, Theo van Gogh é passado.
Mas porque dá a
medida da cobardia dos governantes e do oportunismo dos seus princípios, é
difícil esquecer dias depois do assassinato, o burgomestre de Amesterdão foi
tomar chá a uma mesquita "para acalmar os ânimos dos muçulmanos."
7-“Existem muitas
holandas, ao contrário de há 50 anos”, escreveu. Qual será a preponderante?
Entre
os dezasseis milhões de holandeses há cerca de meio milhão de marroquinos e
outros tantos turcos. Esses são os da primeira geração. Eles e os seus filhos
acatam em geral as leis holandesas, embora sejam muitos a afirmar a supremacia
do Islão. Se as acatarão quando forem a maioria, ou quase, é a grande
incógnita. E como um antigo ministro da Justiça afirmou: "Se forem a
maioria e quiserem a sharia, teremos a sharia".
8-Cita Borges e
escreve que “em todos nós há resquícios de fascismo e racismo”. No que a si
toca…
Claro que há,
claro que tenho, e creio que nisso não me diferencio de Nosso Senhor Jesus
Cristo ou a Madre Teresa. Mas para esses, muito humanos, defeitos do meu
carácter possuo excelentes travões. Não me passaria pela cabeça insultar ou
desprezar alguém devido à cor da sua pele, ou julgar-me superior ao meu
semelhante.
9-Contemplou
diversas vezes a partida da Holanda mas nunca o chegou realmente a fazer?
Porquê?
Nem creio que
o farei, a menos que a Morte ande na minha aldeia a aguçar a foice e me
surpreenda lá. A razão simples é que só na Holanda tenho família: mulher,
filhos, parentes e aderentes. Em Portugal resta-me a casa do meu avô materno.
Mas talvez esse laço seja mais forte do que aparenta, pois há vinte anos que
alterno três meses cá e três meses lá.
10-Fala de
como foi um ‘outsider inside’ no pós-25 de abril e sempre se manteve assim.
Continua, portanto, a sentir-se um ‘outsider inside’ quando liga agora a
televisão portuguesa?
Já o
era há muito, continuo a sê-lo, e poderá parecer exagero, ou até pose, mas o
facto é que, outsider ou insider, Portugal me dói. Outras vezes envergonha-me,
enraivece-me, faz-me desesperar. "Feira Cabisbaixa", de Alexandre
O'Nei,l é dos raros poemas que sei de cor. Para mim Portugal é de facto
"meu remorso, meu remorso de todos nós."
11-Fala das
holandesas que se encontraram com o proletariado no Alentejo, que ainda hoje se
encontram anciões alentejanos que “rebolam os olhos ao recordar esse gostoso
tempo”. Quem se sai melhor neste seu quadro revolucionário?
Devem ter
sido as raparigas, porque além da componente erótica regressaram à Holanda com
a satisfação de terem cumprido um dever missionário, instruindo as massas
trabalhadoras nas possibilidades do Kamasutra
12 - O que
une o rapaz chegado à Holanda, no pós II Guerra, com o olho em Paris, e o octogenário.
E o que os separa?
O benefício
dado a este último de poder olhar para trás e separar o trigo do joio, o que
valeu a pena do que foi tempo perdido.
13 - Fiquei
com a impressão de que tem por hábito e, desde sempre, tomar notas ou manter um
diário dos acontecimentos do quotidiano ou do que leu ou observou. É assim?
De
facto. Vou anotando. Depois deixo passar bastante tempo, o que então me
ajuda a rir de mim próprio, envergonhado de por vezes me ver a desempenhar
aquele papel que nos outros tanto me irrita: o de um sujeito sério.
14 -
“Portugal, se fosse pessoa, já tinha sido condenado por falência”. “A obrigação
da Europa para com os portugueses é, a exemplo do que fizeram os EUA com os
índios, e o Quénia com os animais, é fechar-nos numa reserva”. “Deixados a nós
próprios acabamos por desaparecer”. Resta-nos, portanto, ficar sossegadinhos a
apanhar sol na praia da UE?
Esse parece
ser o nosso destino, a espera de que algo de bom aconteça. Mas sossego, sol e
praia da EU creio que não vai haver, porque isso é gente que duma ou doutra
maneira aparece sempre a apresentar a conta. E os juros.
15 - “Viveu
mais longamente do que o tempo indicado pelo calendário”. O que quer dizer com
isto?
Na minha
juventude a média de vida para os homens em Portugal ia pouco além dos sessenta
anos. Fora isso a idade de Jesus Cristo já me parecia suficiente
16 - Como se
vive aos 86 “sem país ou partido e para onde quer que olhe não descortino
segurança e paz”?
Não a descortino nos
outros, mas tenho-a em mim, de par com uma sagrada independência. Não
devo dinheiro, nem favores, não me prendem benefícios, alianças, amarras ou
filiações, a ninguém tenho de prestar contas. Mas é uma segurança e uma paz que
se paga caro.
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