Por dever de ofício, inclinação natural ou gozo, os políticos sempre
mentiram. A diferença é que antigamente a mentira implicava um esforço, alguma
sofisticação, um esboço de enredo. No Portugal de hoje, atiram-se ao ar as mais
descaradas e preguiçosas patranhas na esperança de que as pessoas as engulam. E
o nível de exigência está tão baixo que a esperança é fundamentada e as pessoas
engolem mesmo as patranhas.
Segundo Catarina Martins, o BE não enviou um representante ao congresso
do MPLA por "não pactuar com ditaduras". É preciso lata, mas também é
preciso uma audiência particularmente anestesiada. Catarina, a Pequena, poderia
justificar a ausência do partido dela em Luanda com o clima, o transtorno das
viagens ou a aversão a mandioca: com a ditadura angolana é que não.
Até é ridículo ter de lembrar a simpatia apaixonada do BE pela ditadura
palestiniana, ou a simpatia assumida do BE pela ditadura venezuelana, ou a
simpatia mal disfarçada do BE pela ditadura cubana, ou ainda, se espreitarmos o
respectivo site, a guarida que o BE oferece a sumidades sortidas, especialistas
na veneração de totalitarismos sortidos. E é confrangedor ter de lembrar tudo o
que os senhores (e senhoras) do BE já disseram, escreveram e pensaram sobre por
exemplo os regimes americano, alemão, britânico, israelita, espanhol e
português, este no tempo em que por cá governavam os partidos vencedores de
eleições.
Pensando melhor, e não é necessário pensar muito, o BE só pactua com
ditaduras. O problema do BE, e da extrema-esquerda em geral, é exactamente com
as democracias, conceito absurdo que deixa aos cidadãos a possibilidade de
escolherem o oposto da miséria com que o BE sonha. O caso de Angola é uma
excepção "estratégica", e embora se trate de uma evidente autocracia
é capaz de possuir residuais virtudes que me escapavam antes do alerta do BE.
Vou ver. Quanto ao resto, prefiro tapar os olhos: é chato sermos burlados por
vigaristas, e humilhante sermos burlados por vigaristas sem talento.
Terça-feira, 23 de Agosto
Notícias do Tempo Novo, XXVIII capítulo
De modo a alcançar a "paridade pura" (cito um ministro
qualquer), o governo quer estabelecer "quotas mínimas por sexo" em
"cargos de liderança". Acho lindo, com reservas. Em primeiro lugar, a
ideia não é nada, nada, nada ofensiva para as senhoras. E se, para o peculiar
feminismo em vigor, as muçulmanas devem ser livres de usar a burka - leia-se
devem ser livres de se subjugar ao marido e ao islão sob pena de lapidação e
consolos afins -, não se estranha que esse exacto feminismo defenda o vexame
das ocidentais através de "cunhas" estatísticas.
Em segundo lugar, é indecente que as quotas se destinem exclusivamente
a postos de chefia. Há demasiado tempo que a recolha do lixo e a carpintaria de
sujos são coutada do macho da espécie, privilégio que urge combater.
Em terceiro lugar, lamento que a proposta se limite às fêmeas. Por um
lado, é escusado ficarmo-nos só por dois sexos. A acreditar (com dificuldade)
no que li algures, a sigla LGBT já pertence ao passado: o presente é LGBTQIA+
(Lesbian, Gay, Bisexual, Trans, Queer, Intersex, Asexuality, + o que calhar). E
do futuro nem Deus sabe. Por outro lado, os tolinhos das "causas" não
dividem a sociedade apenas segundo o género. Há incontáveis subdivisões, de
acordo com a etnia, a religião, a origem social, a naturalidade, o
desenvolvimento intelectual e físico e o diabo a quatro, que convém acarinhar
através de quotas respectivas. Uma xintoísta aborígene, zarolha, transexual,
filha de pai sírio e proveniente de um lar desfeito teria, na ordem ideal das
coisas, o mundo aos seus pés. Ou no mínimo, cito o Expresso, no "sector
público e nas empresas cotadas em bolsa".
Em quarto lugar, o mesmo governo que amigavelmente nos convenceu a
sustentar os 18 cavalheiros da CGD pretende determinar as administrações de
empresas privadas? Nisso já não acredito: deve ser gralha.
Sexta-feira, 26 de Agosto
A força do hábito
O mayor de Londres, que é muçulmano e que há meses proibiu o bikini na
publicidade dos transportes públicos, apareceu a condenar o veto francês ao
burkini (agora também vetado). De acordo com Sadiq Khan, "ninguém tem o
direito de dizer às mulheres o que devem e o que não devem vestir". A
frase faz sentido. Só por acaso, está incompleta. Ei-la inteira: ninguém tem o
direito de dizer às mulheres o que devem e o que não devem vestir excepto se
quem o diz professa o islão ou se o vestuário em causa desrespeita a sharia.
A curiosa participação do sr. Khan no debate ilumina-o. O problema não
é tanto a intolerância de autoridades que forçam senhoras a despir os trapos,
mas o ataque à tolerância que os trapos representam. Mesmo lá no fundo nenhum
ocidental se maça face aos exotismos com que os "outros", ou as
"outras", se cobrem. Os "outros" é que se ofendem face à
"licenciosidade" (cito o prof. Freitas) com que os ocidentais se
descobrem.
Dito de maneira diferente, em circunstâncias "normais" nunca
nos passaria pela cabeça interferir nos hábitos alheios. Nas circunstâncias que
temos, os hábitos alheios simbolizam um projecto destinado a abolir os nossos.
E se era ridículo o espectáculo na praia de Cannes, é grotesca a quantidade de
ocidentais que, mais do que ignorar a ameaça, defende-a e parece ansiosa pela
sua consumação. Tratar o totalitarismo com as regras da liberdade não costuma
acabar bem. Em geral, ganha quem procede ao contrário - como o sr. Khan está
farto de saber.
Sem comentários:
Enviar um comentário