Alberto Gonçalves
– jornal de Noticias
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1.
Os portugueses são os melhores, decretou o presidente Marcelo. No progresso
económico? No avanço científico? Nas artes? Na indústria automóvel? Na gestão
de bancos públicos? Em receitas de bacalhau, vá lá? Nada disso, que um chefe de
Estado não perde tempo com ninharias: no futebol, no fundo aquilo que importa.
Vem aí o Europeu da modalidade e há que "mobilizar" os cidadãos para
um desígnio a que só os vende-pátrias serão alheios. Em Belém, o PR aproveitou
ainda para informar a selecção de que já é campeã "à partida", uma
adenda pertinente se tivermos em conta que à chegada as coisas não costumam
correr bem.
2. Em vez de receber a selecção, o
primeiro--ministro visitou-a. Como é hábito, levou consigo tropeções na língua
e ameaças à Europa, especialmente à França, sobre a qual exigiu
"vingança". Como é hábito, a Europa tremeu. À saída da Cidade do
futebol (?), o dr. Costa confessou-se "menos angustiado" com a
situação clínica de Ronaldo. Por mim, confesso-me angustiadíssimo com a
situação clínica das pessoas que desprezam momentos assim históricos,
preferindo consumir-se com o "resgate" da CGD ou similar assalto,
perdão, auxílio ao contribuinte.
3. A fim de conquistar Paris, a selecção
apetrechou-se com um hino. Para garantir o sucesso, trata-se de uma cantiga
"adaptada" do sr. Abrunhosa, que objectivamente descreve a sua
criação: "Tem um efeito coletivo inebriante e quase mágico." Com
versos do calibre de "Tudo o que nos dás, nós damos-te a ti e somos Portugal!",
não admira. O sr. Abrunhosa acrescenta que a cantiga "já é das pessoas, já
não é minha", mas não falou em partilhar os direitos autorais. Dado que
temos de pagar os salários sem tecto da administração da CGD, cada cêntimo
viria a calhar.
4. Pelos vistos, o lema da selecção é
"Não somos 11, somos 11 milhões", um recenseamento apressado que
despertou a ira do deputado do PS Paulo Pisco (decerto um pseudónimo): "Há
cinco milhões de portugueses espalhados pelo mundo que se sentem excluídos."
Enquanto, com um nó no estômago, imaginamos multidões de compatriotas a sofrer
os horrores da exclusão em Nova Jérsia e no Luxemburgo, consola um bocadinho
ler que o sr. Pisco "já alertou o ministro dos Negócios Estrangeiros,
Augusto Santos Silva, para esta questão, durante uma audição na comissão
parlamentar de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas". E consola
imenso saber que nós pagamos o salário do sr. Pisco, aliás bastante inferior ao
dos administradores da CGD.
5. Já havia o anúncio da cerveja patrocinadora
da selecção da bola, onde três ou quatro moços alucinados gritavam "O
futebol somos nós!" como se quisessem assassinar o espectador. Agora há o
anúncio do supermercado patrocinador da selecção da bola, com imagens de tribos
bárbaras, cuspidores de fogo, explosões, lobos ferozes e um tom geral de ameaça
ao "estrangeiro": "Ouvem rosnar/ Sabem com quem estão a lidar/
Temos mais olhos que barriga/ E esta fome já é antiga." Para a próxima,
outro patrocinador exibirá a selecção da bola a mastigar as entranhas dos
adversários. Ou, se quiserem mesmo meter medo, o "buraco" da CGD.
6. Isto foi apenas o início. Seguem-se semanas
de autocarros, histéricos, bêbados, sardinhas, o "melhor do mundo",
mensagens das vedetas nas redes sociais, berraria, análises de peritos, a
contagem do tempo que o treinador demora nos lavabos do avião (56 segundos,
afiançou um "jornalista") e, se a selecção vencer, 609 milhões de
euros para a economia nacional, um sétimo da nova "injecção" na CGD.
Há países malucos de todo. Felizmente, não é o caso do nosso.
Uma
senhora de esquerda
Graças
a uma entrevista na Visão, conheci a secretária de Estado da Educação,
Alexandra Leitão. Que ser humano encantador! Ela é frontal. Ela é fã de Bruce
Springsteen. Ela é do Sporting. Ela é de esquerda. Ela é "mesmo
lisboeta". Ela é "superavessa" (sic) a maquilhagem. Ela foi
aluna (e colaboradora) de Marcelo, que lhe deu um 18. Ela tem Mandela, Soares e
Salgueiro Maia como "referências políticas". Ela não tem medo. Ela
tem duas filhas. Ela sonha com "igualdade e democratização" no
ensino. Ela lembrou-se de acabar com os "contratos de associação" com
os colégios privados. Ela mantém as filhas inscritas num colégio privado. Ela
viu a aparente contradição apontada nas redes sociais. Ela explica: "As
minhas filhas fizeram o jardim-de-infância e a primária numa escola pública. E
agora estão na Escola Alemã. (...) tem a ver com a opção por um currículo
internacional. Para mim era importante que elas tivessem uma educação com duas
línguas que funcionem quase como maternas, digamos assim. Se assim não fosse,
andariam obviamente numa escola pública."
Ficou
claríssimo. A dra. Leitão quer providenciar aos rebentos um "currículo
internacional", distinção que, no seu entender, o ensino público,
"obviamente" fantástico, não assegura. Mas isso é ela, que além de
dotada intelectual e financeiramente possui consciência social. Sem dinheiro
nem cabeça, a ralé não pode alimentar "opções" assim. Não se espera
que, em vez de patrocinar escolas e sindicatos, o Estado patrocine uma educação
melhorzinha para a descendência dos simples, a qual deve saber o seu lugar e
perceber que daí não sairá. De resto, ao povo basta meia língua e um currículo
nacional, ou o nível de instrução suficiente para aplaudir o fervor igualitário
e democrático de sua excelência, a senhora secretária de Estado.
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