Pedro
Sousa Carvalho - jornal Público
17/06/2016
A
instrumentalização da CGD não é de hoje e não é uma comissão que vai dar ética
a políticos que não a têm.
Por
iniciativa do PSD, o Parlamento vai criar, de forma voluntária ou potestativa,
uma comissão de inquérito para analisar o que se passou na Caixa Geral de
Depósitos (CGD). O primeiro-ministro, António Costa, no debate quinzenal,
respondeu ao repto da direita com a seguinte frase: “Vocês dedicam-se à
arqueologia e nós à construção do futuro.” Que é como quem diz: nós no Governo
vamos governar e vocês na oposição entretêm-se a escarafunchar o passado.
Comecemos
pela arqueologia. A arqueologia, segundo o dicionário, é uma “disciplina
científica que estuda as culturas e sociedades antigas através da análise dos
seus vestígios materiais”. E que cultura antiga é essa que tinha a Caixa Geral
de Depósitos nos tempos idos? Escavações recentes no número 63 da João XXI, em
Lisboa, mostram que foram encontrados alguns artefactos curiosos e que ajudam a
explicar essa cultura milenar na Caixa. Foram encontradas várias “cunhas”, que
segundo o mesmo dicionário é uma “peça de ferro que vai diminuindo de grossura
até terminar em corte para rachar lenha, fender pedras, etc.”. Os arqueológos
suspeitam que esse instrumento antigo terá servido para que a Caixa desse
crédito, com um critério de análise de risco bastante duvidoso, a amigos e a
amigos de amigos dos políticos do bloco central e do CDS que na antiguidade
mandavam e desmandavam no banco público.
Nas
escavações, também foram encontrados outros artefactos e vestígios materiais
que ajudam a explicar esta cultura secular na Caixa. Por exemplo, foram
desenterrados “tachos” na João XXI, que o dito dicionário diz que é um
“recipiente cilíndrico e geralmente metálico, mais largo que alto, com asas,
usado para cozinhar alimentos”. Aqui, os arqueólogos também acreditam que os
tachos terão servido de utensílio para o repasto de políticos e ex-políticos do
bloco central e do CDS que estavam no desemprego e que precisavam de um lugar
bem remunerado para passar uma boa temporada.
Uma
comissão de inquérito à Caixa poderá não ter nenhuma utilidade ou consequência,
mas, se conseguirmos desenterrar estes tesouros deprimentes e conseguirmos que
PS, PSD e CDS se envergonhem do que fizeram no passado, já terá valido a pena.
Não é de hoje que o banco público tem sido instrumentalizado pelos políticos,
servido para financiar projectos de empresas amigas do poder, para dar emprego
a políticos desempregados ou para tapar os buracos do défice. Quando o PSD faz
ar de caso e de virgem ofendida perante os 4 mil milhões que vão ser injectados
na Caixa, convém recordar a todos do bloco central e ao CDS que o que a Caixa é
hoje é o que quiseram que a Caixa fosse no passado.
Com
este espírito de arqueólogo, fui desenterrar uma crónica que escrevi no Diário
Económico há cinco anos a propósito de um frete que o banco público tinha feito
ao Governo ao antecipar ao Estado o dinheiro de um negócio feito com o fundo de
pensões da PT. Reproduzo aqui um parágrafo que escrevi em Junho de 2011: “Há
mais na Caixa do que você imagina. (…). A recente venda do edifício- sede na
João XXI ao próprio fundo de pensões do banco com uma mais-valia de 103,7
milhões; empréstimos e operações com uma racionalidade económica duvidosa como
a compra de 10% das acções da Cimpor ao empresário Manuel Fino, por um valor
25% superior ao do mercado; ou ainda créditos a conhecidos empresários da nossa
praça para comprar acções de um banco concorrente. (…)Isto tudo para não falar
dos aumentos de capital (que só contam para a dívida pública e não para o
défice) que o Estado muitas vezes faz na Caixa e noutras empresas públicas para
receber, por portas travessas, o mesmo dinheiro através de chorudos dividendos,
estes, sim, a contar para o défice.”
A
instrumentalização da Caixa não é de hoje e não é uma comissão de inquérito que
vai dar ética a políticos que não a têm. Mas se há uma auditoria, noticiada
esta semana pelo Correio da Manhã, que afirma que o banco concedeu créditos com
"deficiente análise de risco" ou com garantias claramente
insuficientes, então a comissão de inquérito já tem uma primeira tarefa: pedir
que se torne pública essa auditoria. A segunda tarefa é fazer perguntas, mesmo
que algumas possam esbarrar e morrer nalgum tipo de sigilo ou segredo bancário.
O
que não faz sentido é descartar uma comissão de inquérito com o argumento
utilizado por Carlos César, do PS, que diz ter as maiores reservas que “um
banco com a dimensão e responsabilidades no mercado [como a] CGD, que actua em
concorrência, possa ou deva ser sujeito a uma devassa pública em comissão
parlamentar de inquérito". Rebaixar uma comissão de inquérito a uma
espécie de órgão voyeurista do Parlamento é retirar toda a dignidade a este
instrumento de que os deputados dispõem e que desempenha um papel fundamental
de escrutínio dos actos do governo e da administração pública.
Pior
ainda é o argumento usado por outros como Bagão Félix que em declarações ao
jornal i se manifestou contra uma comissão de inquérito, já que este “é um
processo em que não há inocentes e vai minar a confiança dos portugueses no
sistema financeiro. (…) Vai ser um atirar de lama constante de um lado para
outro”. Bagão Félix tem razão quanto diz não haver inocentes nesta história. Na
tal crónica escrita há cinco anos, também lembrava o episódio de 2004, quando o
então ministro das Finanças, precisamente Bagão Félix, aprovou a transferência
de 2,5 mil milhões do fundo de pensões da CGD para a Caixa Geral de
Aposentações para manter o défice abaixo dos 3%. O facto de não haver inocentes
não é justificação para não se procurar culpados.
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