António Guerreiro - jornal público
A
escrita romanesca de J. Rentes de Carvalho é um exercício de saturação e
exacerbação a que podemos chamar hiperliteratura, como se fosse um pastiche ou
uma caricatura.
Experimentemos ler a primeira frase deste
romance, o incipit, porque aí começa a encadear-se um sotaque narrativo e
literário que não esmorece até à última linha: “Alguém terá de lhe emprestar as
palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de
dizê-las, estonteado pelo remoinho, a vida a desfilar em ondas de desespero,
ocasiões falhadas, sempre ele o que perde, a sofrer envergonhado, o que baixa
os olhos e até de si próprio tem de fugir”. E digo “sotaque”, como se estivesse
a escutar uma fala ou uma dicção, porque tudo na escrita de J. Rentes de
Carvalho concorre para que deixemos de prestar atenção ao agenciamento
narrativo e à história, à qual não faltam apelos de um bruto realismo, para
ouvirmos em contínuo o tom da afectação, do enfatuamento, da ênfase. Poucas
páginas mais à frente, há uma passagem onde se insiste, com inadequada
verbosidade, às insuficiências e aos desvios fraudulentos das palavras: “As
palavras deturpam, escondem, diminuem, fracturam. Traduzem mal a réstia de luar
que toca a vidraça, o modo como ela se despiu e o espera na cama, retesada,
medrosa, no chão os sapatos de cetim branco, o vestido de noiva pendurado na
cadeira”. Há neste romance uma crítica da linguagem, como se poderia deduzir
desta passagem? Nem pensar nisso. Tudo nele transborda eloquência, ou melhor,
loquacidade. Literária loquacidade, como esta que se segue: “Visões do
inverosímil, semelhanças de realidade, desassossego, ameaças, chamamentos de
tentação, resíduos da memória entrelaçados numa fábula em que se observa,
desconhecido de si mesmo”.
Como já se percebeu, O Meças é um romance
que acumula em grandes doses os mais indiscretos signos que anunciam o
literário. Devemos mesmo dizer que é uma manifestação exuberante de
hiperliteratura. É plausível que aí resida a razão do sucesso que Rentes de
Carvalho alcançou nos últimos anos. Não apenas por isso, ele satisfaz
plenamente e de maneira eficaz a tendência conservadora, regressiva e inócua de
grande parte da actual ficção narrativa de escritores portugueses. Rentes de
Carvalho não foi descoberto tardiamente, como se costuma dizer; foi descoberto
quando chegaram os seus contemporâneos, aqueles com os quais, embora muito mais
novos no registo civil e nos depósitos da Biblioteca Nacional, não havia
discordância de tempos nem de modos. Os seus contemporâneos jamais poderiam ser
aqueles que em tempos chegaram a coincidir com ele no tempo de publicação: um
Carlos de Oliveira, uma Maria Velho da Costa, uma Agustina, uma Maria Gabriela
Llansol.
Mas concentremo-nos nesta última produção
da sua já vasta hiperliteratura, um romance que tem o nome de uma personagem
transmontana, a quem todos chamam Meças, um homem duro, inflexível e de
impulsos violentos. A sua história é feita de ódio familiar, violência sexual,
assassínio por vingança e por sentimentos de pundonor (como nos códigos das
sociedades antigas). Diríamos estar aqui perante um universo muito camiliano,
mas tudo redunda em grotesca caricatura, pelo que não vale a pena invocar
Camilo ou Agustina em vão. Resulta em involuntária caricatura uma escrita que
reúne todos os atributos daquilo a que chamei hiperliteratura. A saber:
1) O Kitsch. É o triunfo do decorativo, as
frases que, digam elas o que disserem, dizem sempre e apenas isto: vejam como é
belo, apreciem o que é escrever bem. Escrever bem, neste sentido, é produzir um
discurso muito ornamentado e inócuo; ou então é apontar para a sublimidade de
maneira tão frouxa, que o leitor, em vez de sentir exaltação, só vislumbra a
insuficiência dos meios, a declinação dos lugares-comuns: “Montes escalavrados,
encostas de luz, encostas de sombra, outeiros, um rio a marulhar apertado na
estreiteza de fraguedos, mais arbustos do que árvores, casario em longes que a
vista mal enxerga. Imutável desde a Criação, daquela paisagem sempre fiz
cenário de teatro, dizendo-me que por detrás dos penedos e dos baldios começava
o mundo, maneira que tinha de, criança ainda, lhe suportar a ameaça e a
formidável imponência”. É a paisagem transmontana que assim é descrita.
2) A exacerbação do estilo. A noção de
estilo é muito vaga, tão vaga como nesta definição de Flaubert: “O estilo é por
si só uma maneira absoluta de ver as coisas”. Quando se entende o estilo de
maneira menos vaga é quando se diz, por exemplo, que o pastiche consiste em
imitar o estilo de um autor, de um género, ou de uma “escola”. É muito difícil
identificar e caracterizar o estilo de Kafka, mas na escrita de Rentes de
Carvalho vemos o estilo em todo o lado. Vêmo-lo como pastiche ou como tiques de
linguagem. Um exemplo: o autor nunca diz “com as duas mãos”, nem “com ambas as
mãos”, nem sequer “com as mãos ambas”. Diz sempre “às mãos ambas”. Não sei de
onde vem esta forma, não sei se é um arcaísmo, não sei se é um idiomatismo do
escritor. Mas sei que à terceira vez que a li, pensei: “aqui está uma prova bem
visível do estilo, isto é, o estilo como tique de linguagem”. Este tique não é
mais espasmódico do que muitos outros que este romance nos proporciona, mas tem
a vantagem de ser facilmente citável porque é breve.
3) A frivolidade. Tal como o estilo
pretende ser uma maneira absoluta de ver as coisas, mas acaba por ser, na
escrita de Rentes de Carvalho, uma maneira de ser cego perante elas, assim a
afectação patética (isto é, a manifestação de um pathos) e a expressão enfática
revelam uma falsa profundidade e uma parca capacidade de penetração. Nada é tão
superficial e tão frívolo como isto: “Porque o destino o quis, há muito deixei
de lutar, procurando não a impossível mudança daquele que sou, mas fugindo na
invenção de mim mesmo, um pouco à maneira do bicho que para se defender escolhe
a aparência que mais seguramente o disfarça. E é por certo para melhor me
ocultar que torno mais vivos e detalhados os outros, que levanto o biombo atrás
do qual desapareço e os deixa a eles no palco.”
4) A redundância. É a qualidade mais
abundante neste romance. Da maneira mais evidente, encontramo-la com frequência
nas longas ou breves descrições em que quanto mais são as palavras menos é
aquilo que se diz e mais vago é o dizer. Neste item, uma frase merece ser
citada. É aquela em que se fala de “um sentimento de excitação e nostálgica
melancolia”. Note-se: não é apenas nostalgia, nem apenas melancolia, é uma
cruzamento das duas, que nenhuma psicologia das profundezas conseguirá
explicar, mas que num romance é a literatura em estado de apoteose.
5) A deflação erótica. Há algumas cenas de
crueza sexual neste romance, às vezes recuperando uma linguagem obscena já
pouco usada. Onde é que hoje ainda se diz que uma mulher “estava na fressura
com a amiga”? Mas isso é pouco relevante, quando temos, algumas páginas mais à
frente, esta descrição erótica de baixo preço e alto teor deflacionário:
“Erecta, a um passo de mim, tudo no seu jeito manda que espere, me deixe
hipnotizar pela beleza, sofra a vertigem do almíscar que a pele exala, descubra
o arrebatamento da obediência, aceite que ela me guie (...). Vem para mim,
sustentando os seios com um gesto natural, como a ajeitá-los, e enlaça-me,
beija-me nos lábios.”
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