ANDRÉ GONÇALVES-
Diário de NOTICIAS
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Segunda-feira. A meio do Jornal das 8 da
TVI, José Alberto Carvalho anuncia a "peça" (e que peça) seguinte:
"Pai das deputadas Joana e Mariana Mortágua mantém a rebeldia e a
insatisfação sem meias palavras. É Camilo, o revolucionário."
Começa a coisa. Um velho passeia em São
Bento e a voz off explica: "Salazar e Caetano hão-de dar voltas na tumba
face às regras da democracia parlamentar que permitem hoje a Camilo Mortágua
caminhar livremente pelos Passos Perdidos." Corte para o interior do "hemiciclo",
o qual revela que a voz off pertence a um sr. Bandarra, em princípio
jornalista. A narração prossegue, por sua vez revelando que o sr. Bandarra
pratica um estilo de jornalismo, vá lá, peculiar: "Camilo participou nos
mais célebres, arriscados e espectaculares golpes contra o regime fascista
[sic]." Intercalada com fotografias de arquivo, a hagiografia continua:
"Camilo, aqui atento, crítico e sempre utópico. Mas terá sido para isto
que lutou e arriscou a vida?" Ao fundo, ergue-se música épica. Enfim,
Camilo fala.
E fala, com "gravitas" de serão
teatral, para confessar que, afinal, a democracia parlamentar, cheia de
"contradições" e "fingimentos", não é bem o seu género. Se
calhar, proibiam-se as bancadas do PSD e do CDS e aquilo ficava composto. O sr.
Bandarra não vai por aí: "Camilo não é homem de fingimentos ou meias
palavras" (já alguns profissionais da TVI não dispõem de muitas palavras
inteiras), pretexto para evocar a história do Santa Maria e o desvio do avião
da TAP, ambos "os primeiros desse tipo em todo o mundo." Por acaso é
uma cabeluda mentira, mas ao sr. Bandarra interessa menos a realidade do que
demonstrar que os Descobrimentos não cessam de correr no sangue lusitano. Desse
por onde desse, o "célebre assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz"
não pôde reclamar estatuto de pioneiro. Em compensação, deu origem "à
fundação da mítica LUAR". Logo, garante o sr. Bandarra, Camilo é: a) um
terrorista; b) um criminoso comum; c) um maluquito. Nada disso: "É um
histórico da luta e acção directas." E teve "uma vida cheia". O
sr. Bandarra, cujo crânio parece vazio, não questionou os propósitos altruístas
do roubo. Ou a legitimidade da "acção revolucionária".
Após lamentar que não se façam filmes
"de suspense e aventura" sobre Camilo, "libertário e até romântico",
o sr. Bandarra parte para a "peça" em si. O desplante prossegue -
informa o visor - por vinte minutos, nenhum desprovido de elogios ejaculatórios
do sr. Bandarra, que trata o revolucionário por "tu" e explica que
este "sempre insistiu em pensar pela própria cabeça", característica
indispensável no marxismo.
Por falta de espaço, e de compreensão dos
paginadores do DN para com os grandes heróis do totalitarismo indígena, não
posso contar tudo. Limito-me a revelar dois ou três pontos altos. Quando comenta
o assassínio de um dos oficiais do navio sequestrado, Camilo limpa as unhas e
diz "É a vida." E acrescenta: "Somos todos culpados, incluindo
ele." Um tribunal a sério discordaria. Depois, Camilo informa que "a
violência não física é por vezes muito mais violenta do que aquela que faz
sangrar". O marinheiro abatido também discordaria, mas isso já são manias.
Segundo o sr. Bandarra, o Santa Maria foi "uma espectacular
operação".
Pelo meio, há uma digressão acerca das
populares filhas de Camilo, a quem os pais deram "toda a informação",
desde que, evidentemente, "assentassem no caco" certos
"princípios". Ou seja, lá em casa discutia-se o espectro ideológico
de M a M, ou de Marx a Mao. Uma das meninas, não sei se a que, sem dúvida sob
influência parental, publicou a meias com Francisco Louçã um livrinho
intitulado Isto É Um Assalto, proferiu umas banalidades alusivas à
"consciência política" e "coerência" do paizinho.
José Rodrigues dos Santos / José Gomes Ferreira |
Escolhi, porque sim, a redentora peça do
sr. Bandarra com o romântico Camilo, um momento de pornografia mental que não
serve para quase nada, excepto para ilustrar na perfeição o estado a que isto
chegou e sobretudo o estado a que, salvo milagre, isto chegará.
Por decisão pessoal, o autor do texto não
escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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