Apresentação de Alentejo Prometido, de
Henrique Raposo
FONTE: Posted by JRC J. RENTES de CARVALHO |
Em meados de Dezembro, o Henrique Raposo
convidou-me para apresentar o seu livro. Aceitei por duas razões, sendo a
segunda a amizade que lhe tenho. A primeira é a do respeito que me merece a sua
inteligência, e a consequente e independente maneira como defende as suas
convicções.
Entretanto, e infelizmente, o que seria apenas
um corriqueiro convívio, transformou-se num caso, acendendo paixões que não
deveriam ter lugar numa sociedade civilizada e democrática, onde o diálogo é a
regra, antes pertencem à bandalheira de quando muitos fazem muito barulho,
criando para si próprios a quimera de que têm a razão do seu lado.
Em boa saúde mental, e por mais contrária
que ela seja, a ninguém ocorrerá negar ao outro o direito à sua opinião. Se lho
nega, automaticamente se exclui do quadro em que a democracia e a liberdade de
expressão funcionam, dando preferência ao insulto e à ameaça, o que,
permitam-me que o diga, não abona o grau de civismo de quem assim se comporta,
como levanta dúvidas sobre as suas intenções.
Curioso de como ele expressaria a relação
com as suas origens, quando recebi este livro do Henrique sentei-me a ler,
pondo de lado a falta de afinidade que tenho com o Alentejo, o desalento que me
causa aquela terra plana, a recordação dos calores que lá suportei, e a
estranha indiferença que por vezes sofri ao perguntar um caminho ou pedir uma informação.
Tendo colocado esse biombo entre mim e a
obra, li de uma assentada – expressão
que só o Francisco José Viegas e eu ainda usamos, talvez também o Mário Cláudio
– li pois, de uma assentada, até à página vinte e cinco, parando então para me
recompor da inveja que senti, e iria
aumentando até que parei.
A ver se explico o que me levou a franzir
o sobrolho no começo deste Alentejo
Prometido, e continuaria para lá da página vinte e cinco.
Acontece-me ser filho único, único neto,
os primos que tenho são daquela gente em quarto ou quinto grau que, quando por
acaso me recordam o parentesco, deixam a impressão de estarmos a representar
numa peça do teatro absurdo.
Ora o Henrique Raposo, não pertence apenas
a uma extensa família, tem à sua volta uma verdadeira tribo, o que aos meus
olhos de filho único, com primos que nada me dizem, equivale à posse de
certezas e seguranças comparáveis às que
na Idade Média garantiam os castelos.
Esse sentimento de inveja manteve-se,
mesmo naquelas passagens sobre os
festejos do casamento, em que, tivesse eu participado, me sentiria
demais, e incapaz de ceder a tão esfusiante alegria.
Li até ao fim, deixei assentar, e comecei uma vagarosa segunda leitura que
foi, de facto, uma espécie de conversa, tentando compreender a visão do autor,
e fazendo o possível para que o escasso conhecimento que tenho do Alentejo, os
meus preconceitos, e a memória de um ou outro caso, não viessem interferir.
No Verão de 1964, passados catorze anos de
ausência, pude voltar a Portugal, e o desejo de rever o país levou-me a Évora,
depois ao litoral alentejano.
Recordo Santiago do Cacém; a lagoa de
Santo André; o diminuto porto de pesca que Sines então era; a estranheza de
Porto Covo, uma praia deserta. Em Vila Nova de Milfontes achei que chegava de
calor e solidão.
Em Abril de 74, e nos meses seguintes,
andei muito pelo Alentejo, tiraria dessa experiência um romance, mas a época
era de confusão e irrealidade, dando-me ideia de testemunhar cenas de mau
teatro, trágicos enganos e esperanças mentidas.
Dez anos depois, em busca de documentação
para um guia de Portugal, percorri o Alentejo durante quase um mês.
O 25 de Abril tinha feito alguma diferença, mas para mim, homem do norte, ficou a recordação
da planura, o sem-fim de sobreiros,
azinheiras, aquele fogo do céu, o
retraimento de algumas das pessoas com quem lidei.
A leitura de Alentejo Prometido veio
confirmar alguns dos meus preconceitos para com a província e os alentejanos,
mas em vez de me considerar apoiado,
ressenti uma certa desconfiança em relação às proposições do autor, e à furiosa
maneira como ele desanca a sua terra e a sua gente.
É que o Henrique, como se tivesse nas mãos
uma daquelas mocas históricas de Rio Maior, bate a torto e a direito, e quando
chegamos ao fim, à página 103, resta a impressão de que no Alentejo só se
salvam as mulheres.
O que me pareceu demasiado radical para me
convencer. Fora que, pelo meio, e foi isso que me deixou de pé atrás, canta ele
um inesperado Laudamus ao norte de Portugal.
Por questões de genética, e porque se dá o
caso das minhas raízes serem desses lados, presto uma doentia atenção a tudo o
que se afirma sobre a terra e o povo nortenho.
Ora o Henrique, que tão franca e
fortemente varre os alentejanos à mocada, fica todo de mimos quando se refere à
minha gente.
Segundo ele, lá pelo norte, de manhã até
ao serão, e pelos vistos noite fora, os nortenhos constantemente se abraçam e
apertam, sorriem, querem-se bem, saúdam o forasteiro.
Da certeza desse carinhoso tratamento
passa ele ao Douro, e é como se estivesse a recitar as Geórgicas de Virgílio.
Com tanto entusiasmo, aliás, que eu por momentos me deixei convencer, dando por
mim a olhar para as vinhas e as arribas do Douro com a ingenuidade dos turistas
que, espichados ao sol, vão rio acima comendo e bebendo.
Deixem que eu tente refrear o entusiasmo
do Henrique sobre a minha gente a minha terra.
Se o alentejano tem essa trágica
inclinação para, pelo suicídio, se libertar das agruras da vida, o transmontano
deita aos outros a culpa de tudo, raro lhe passa pela cabeça enforcar-se. Em
vez disso, pega na caçadeira ou na calagouça, sai à rua e mata o vizinho.
Aquele Douro bucólico que entusiasma o
Henrique, com gente que se beija e abraça, hotéis de cinco estrelas, barcos de luxo,
não é o genuíno, o rude, pobre e atrasado Douro, é uma realidade virtual para
inglês ver, fabricada um pouco à maneira das aldeias de papelão, com que
Potemkin maravilhava a imperatriz Catarina da Rússia.
Parafraseando Bocage, este longo introito
não foi eu que o fiz, mas o literato em mim, tentando ganhar tempo para
esconder a perturbação.
Porque Alentejo Prometido me perturbou. É
tudo menos um livro que convide ao gracejo e à ligeireza. Estão nele os factos,
as dolorosas estatísticas, as confissões, a realidade crua de um viver pobre, a
grande secura de bens e afectos sob um
céu apostado a calcinar com igual ferocidade o chão e a alma.
O Henrique põe-se a si próprio, aos seus,
aos alentejanos e ao Alentejo, num palco para onde o espectador olha com um
sentimento em que o medo de ver e a curiosidade vão de mãos dadas.
Ao mesmo tempo, porém, fica a dúvida: mau
grado as estatísticas, as tragédias que ele aponta, os testemunhos que
partilha, não será a sua uma visão demasiado unilateral? Haverá fidelidade no
seu olhar, ou somente paixão?
Porque é grande a discrepância entre o
retrato que nos faz e, para só mencionar um, o do tão acarinhado cenário de
montes românticos, dos quartos de hotel que, com tectos de vidro, oferecem o
requinte de dormir ao relento sem o incómodo da canícula, da bicharada, e não
querendo mais dos alentejanos do que
ouvir-lhes ao longe o eco do cante.
Daí posso concluir que de nada adianta fazer de advogado do
Diabo, tão-pouco importa concordar ou discordar do autor.
Um alentejano nascido, criado e reformado
em Mértola, vê outro Alentejo. Os muitos holandeses que conheço e lá vivem,
falam de uma terra paradisíaca, todo o avesso dos pólderes encharcados. E o
turista, venha ele de Lisboa, do Texas ou da Suécia, irá lá menos para ver ou
sentir, do que para se babar com as platitudes debitadas pela indústria do
turismo.
De facto será sempre cada cabeça sua
sentença, o juízo de cada um não fazendo mais do que aclarar à sua maneira uma
parcela da realidade. Ou, o que também acontece, distorcer essa realidade, em
função dos sentimentos exaltados daqueles que apenas consideram justa a sua
própria opinião, e pouca ou nenhuma ideia têm do que seja o direito à liberdade
da palavra. Para não falarmos do que manda o civismo mais elementar: o respeito
pelos outros.
É que dá pena haver tanta democracia na
boca e tão pouca no comportamento.
Retornando ao livro.
Excelente prosa. Pode isto soar a
cumprimento de circunstância, mas está longe de sê-lo, pois vai tempo desde que
de um colega pude dizer o mesmo.
Esta prosa do Henrique Raposo, não me dá
apenas a satisfação de vê-la bem
cuidada, mas prova que não me devo afligir com a miséria dos temas, nem com as
enxurradas de má prosa, e os delírios de ignorância gramatical que, nos livros
e jornais, diariamente testemunho.
Não me venham com o fadinho em ré menor,
de que as escolas não ensinam e já ninguém lê.
O caso é que o geral das pessoas parece
ter descambado e, pelas razões que todos conhecemos – a histeria de querer
marcar presença, um pouco à maneira dos cachorros que vão dando mijadinhas em
cada pneu de automóvel – em vez de ler desataram a escrever.
Isso importa ? Creio que não. Na nossa
sociedade, mesmo nos tempos áureos do século XIX e meados do século XX, já era
frequente a queixa de que as pessoas não liam. De facto assim era e assim é, e
a absurda quantidade de livros editados, e vendidos, pouco tem a ver com o
fenómeno da leitura.
Porque ler implica pensar, emocionar,
sentir, dispor de tempo, actividades que pressupõem um nível de existência que
nem a todos é dado, mas também de que muitos desdenham ou desconfiam, pois não
tem som, nem cores, não dá fama, nem proveito imediato.
Assim sendo, arrisco-me a dizer que o
Alentejo Prometido só irá cair nas graças dos que sabem ler e se dão tempo para
pensar.
Esses tirarão o proveito de serem
confrontados com a sinceridade de um autor que investiga, estuda, e procura
compreender as razões das suas origens, e do desencontro dos sentimentos, que
ora são de pertença, ora de rejeição.
Certo de ter compreendido e encontrado,
surpreende ele o leitor, afirmando:
"A linhagem do velho Alentejo termina
aqui o seu caminho. Não passará para as minha filhas. Não quero que elas sejam
alentejanas, porque eu próprio não me sinto alentejano. Sou filho de uma
migração que saiu do Alentejo, mas não sou nem quero ser alentejano."
Fora de dúvida que este desabafo é sincero
e doloroso, mas confesso – e peço desculpa – o Henrique apenas dá prova de
juventude, de ter agora certezas que um dia estranhará, julgando que pode escolher,
que lhe cabe o poder de abandonar.
É compreensível que sinta a necessidade de
gritar aos quatro ventos que não se sente alentejano, que cortou as raízes, mas
o grito que parece de revolta é apenas de impotência.
A impotência de nada poder remediar, a
incapacidade de compor o que nasceu e continuará torto, a tragédia de sentir
que, no Alentejo, são sem conta os males que não têm cura.
Digo isto com um sentimento de comunhão e
melancolia, porque também eu o gritei – não a uma província, mas ao país inteiro
– jurando que não queria pertencer, que recusava o fardo.
Poderia ter nascido daquela gente, naquele
chão, mas a minha sede de viver não se acomodava com aquele modo, nem aquela
terra, pedia outros horizontes.
E nem adeus disse. Um fim de tarde voltei-lhe
as costas, pus entre nós a largura do
oceano e, cortando ainda mais fundo, cuidei de usar outras línguas, quase esquecendo a minha.
Vivi assim décadas, certo de que
conseguira desprender-me e me encontrava a salvo.
Para um dia, sem aviso, me dar conta de
que tinha sido ilusão: o que eu julgara laços fáceis de cortar, eram algemas.
Invisíveis, é certo, mas fortes e permanentes.
O mesmo acontecerá ao Henrique.
Que grite contra o Alentejo, que o encare
e lhe faça um manguito. Que repita quantas vezes quiser que vai embora, que não
lhe quer pertencer.
O Alentejo sorrirá. Porque o Henrique
Raposo não é único, nem o primeiro que, magoado e triste, definitivamente se
quer exilado. Tão-pouco será ele o último.
Mas em todos, nos que partem
desencantados, como nos que se acomodam e ficam, pesa igual a mesma realidade:
a marca que os antepassados nos deixam na alma é indelével.
Ilude-se aquele que, indo embora, se julga
capaz de poder descartá-la.
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