Vanessa Rato (21/12/2015) - jornal Público
O
politólogo António Costa Pinto escreve a introdução à edição portuguesa que a
E-Primatur está a fazer chegar ao mercado. Defende que, em 2015, o opus magnum
de Aldof Hitler não passa de “um pedaço da História” já “sem capacidade de
mobilização extremista”.
Em Janeiro será feita a primeira reedição
alemã desde o fim da II Guerra Mundial
Já se sabe: apesar do rasto que conseguiu
deixar, Mein Kampf (A Minha Luta), de Adolf Hitler, é uma obra de estatura
questionável, tanto em termos teóricos como literários. Era-o nos anos 30 e 40
do século XX, quando se tornou num revoltante bestseller, é-o redobradamente
agora, 70 anos volvidos sobre a queda do III Reich e o suicídio do seu autor.
Qual então o interesse – e, já agora, quais os perigos – de reeditar este livro
proscrito, talvez o mais odiado da História? É o que estão a fazer
vários países,, aproveitando o momento em que os
direitos da obra entram no domínio público. Alemanha e França estão entre esses
países. Portugal também. “Os perigos são escassos”, defende o politólogo
António Costa Pinto na introdução à edição que a E-Primatur está a fazer chegar
ao mercado. “Mein Kampf não serve já como documento de ódio”, defende também
Hugo Xavier, da editora.
Com o lettering gótico e o vermelho, preto
e branco directamente importados da imagética Nazi na capa, a primeira edição
integral portuguesa do século XXI está pronta a comercializar um mês antes da
grande edição comentada que o Instituto de História Comparada de Munique conta
publicar em Janeiro, na que será a primeira reedição alemã desde o fim da II
Guerra Mundial – e no que é também o mais ambicioso dos projectos
internacionais envolvendo hoje a obra que o líder do Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães começou a estruturar em 1924.
A do IHCM é uma edição em dois volumes,
como a original, mas com duas mil páginas e cerca de cinco mil entradas de
notas e comentários de nova investigação académica. Tem um fôlego absolutamente
distinto da edição portuguesa, que surge num volume único e conta apenas com a
breve introdução de Costa Pinto – três páginas.
Mein Kampf - A Minha Luta
Adolf Hitler, António Costa Pinto (prefácio)
E-Primatur, 656 págs
Preço de capa: 22 euros
A do IHCM apresenta-se como uma obra
monumental de desmontagem das teses racistas e anti-semitas de Hitler, visando
minorar o impacto negativo da reedição. Até porque há a ter em conta “os
sentimentos das vítimas” do Holocausto, como explicou o
governo regional bávaro, que até este ano foi titular dos direitos da obra e
decidiu não endorsar o projecto. Mas este é um ponto de vista distinto do
trabalhado por Costa Pinto. Especialista em sistemas autoritários e fascistas,
o politólogo português pondera sobretudo a capacidade de mobilização da obra. E
essa é irrelevante, defende.
Mein Kampf tornou-se “definitivamente e
apenas um pedaço da História Mundial, sem capacidade de mobilização extremista”,
lê-se na edição da E-Primatur. Já o interesse da reedição, como documento
histórico “é grande por um motivo simples e raro: o seu autor teve a
oportunidade histórica de tentar cumprir pelo menos uma parte do que escreveu”,
explica Costa Pinto.
“Se tivesse ficado
apenas como um manifesto ideológico de um chefe político extremista do início
do século XX, racista e anti-semita, Mein Kampf ter-se-ia provavelmente perdido
na multidão”, escreve ainda o politólogo. E os dados históricos de vendas
parecem dar-lhe razão.
No ano do seu lançamento, em 1925, Mein
Kampf vendeu 9473 exemplares, número que foi descendo muito nos três anos
seguintes. Só a partir de 1929 as vendas começaram outra vez a subir. E o
grande salto – para o milhão de exemplares – surgiu apenas em 1933, o ano em
que Hitler se tornou chanceler, etapa fundamental da sua marcha de supremacia
individual, numa escalada que fez com que em 1940 a sua autobiografia
doutrinária fosse de quase leitura obrigatória, vendendo seis milhões de
exemplares.
No total, no seu tempo, Mein Kampf terá
vendido cerca de 12 milhões de cópias. Depois, em 1945, chegou a vitória dos
aliados, a queda do fascismo alemão e o suicídio do Führer: Mein Kampf foi dado
como livro maldito e proibido em muitos países, ficando os seus direitos na
posse do governo regional da Baviera, que desmantelou a principal editora Nazi,
a Franz Eher, de onde esta obra saíra, e não permitiu a transição da
titularidade para herdeiros que pudessem continuar a comercializá-la. Assim, ao
longo da segunda metade do século XX Mein Kampf surgiu em edições clandestinas,
muitas das quais truncadas, apesar de se apresentarem como integrais. E muitas,
claro, ligadas a organizações de extrema-direita, que por vezes editam o texto
de forma a evidenciar a sua carga de manifesto ideológico.
Em Portugal, a edição mais recente listada
pela Biblioteca Nacional é de 2011 e está atribuída a uma editora identificada
como Casa de Berlim. Antes, em 1998, houve a polémica e mediática edição que a
Hugin conseguiu fazer chegar às livrarias mas acabou por retirar por pressão da
comunidade judaica e da embaixada alemã em Lisboa, que invocaram a legislação
europeia contra o apelo ao ódio, à xenofobia e ao racismo. Antes ainda houve a
edição de 1987 da Pensamento. A primeira após a conhecida edição de 1976 que
Fernando Ribeiro de Mello começou a preparar para a Afrodite depois do 25 de
Abril.
É esta última versão, da Afrodite, que a
E-Primatur retoma, com uma revisão de Marcelino Amaral que introduz cerca de 20
novas páginas em português.
Originalmente traduzida por Jaime de
Carvalho, a versão da Afrodite tinha vários trechos deixados em alemão, explica
Hugo Xavier, um dos responsáveis da E-Primatur. Houve também todo um novo
trabalho de cotejamento, explica ainda este responsável. Por exemplo, termos
que no original alemão eram usados em diferentes declinações – sinónimos como
raça, etnia e linhagem – na versão da Afrodite tinham sido passados
uniformemente a “raça”. Foi corrigido.
A da E-Primatur será, assim, uma versão
mais fiel ao original, mais correcta. O que não muda em nada a qualidade
intrínseca desta “obra chatíssima, que podia ter sido escrita em 100 páginas”,
em vez de mais de 600, ironiza o editor.
Hugo Xavier é especialmente crítico em
relação ao obsoletismo de muitos dos conteúdos de Mein Kampf, nomeadamente em
relação a considerações de geopolítica internacional, hoje anacrónicas. É
especialmente crítico, também, em relação à fragilidade de um pensamento que
começa por desmontar a decadência do sistema parlamentar para acabar a atribuir
à comunidade judaica a responsabilidade de todos os males da sociedade moderna.
É crítico ainda em relação a questões de forma. Primeiro em relação à lógica
narrativa circular, com as ideias a repetirem-se ciclicamente. Depois, em
relação ao tom de insulto às massas populares, tratadas como “ignorantes”,
“brutas”, numa abordagem que considera dificilmente tolerável pelos leitores de
hoje.
Tal como Costa Pinto, Hugo Xavier defende
que, pelo conjunto destes motivos, Mein Kampf “não serve já como documento de
ódio”, exigindo, para isso, “muito trabalho de edição”. E este constitui novo
motivo para uma defesa da publicação integral e cuidada: o editor acredita que,
na verdade, contribuirá para a desmistificação da obra.
Não é apenas uma opinião distanciada, já
muito deslocada do epicentro do Holocausto e do contacto com as suas vítimas
directas. Esta é também a opinião, por exemplo, da jornalista e escritora
Miriam Assor, que nasceu numa família de judeus ortodoxos e que, depois de uma
visita aos campos de concentração, em 1985, decidiu fazer dois anos de vida
comunitária nos kibutz de Israel. Filha de Abraham Assor, rabino histórico da
comunidade israelita de Lisboa, Miriam Assor acredita que a reedição de Mein
Kampf “pode vir a educar e fazer ver tudo o que está errado”.
“Quem milita ideias
anti-semitas não precisa da bíblia Nazi para as suas convicções”, defende a
jornalista e escritora. Miriam Assor leu Mein Kampf durante a sua estadia em
Israel. “Fundamentalmente, agride o espírito humano. Há quem consiga isso
escrevendo bem, não é este o caso. Se calhar as pessoas vão perceber agora que
ele foi ditado por um ignorante e que a sua raiva, dirigida aos judeus, é mal
estruturada.”
O “tom inflamado, incendiário” não esconde
a “paranóia” do homem por detrás, diz ainda: “É errado censurar, mostrar medo”
em relação a este livro “ridículo”.
Precisamente, é de liberdade de expressão
– e, dentro desta, de liberdade de imprensa – que primeiro fala José Carp,
actual líder da Comunidade Israelita de Lisboa. “Nós somos sempre a favor da
liberdade de expressão, e isso implica liberdade de imprensa”, começa por dizer
ao PÚBLICO. No entanto, a comunidade não reuniu ainda para debater o “tema
delicado” desta reedição. Assim, José Carp não sabe em que ponto se encontrarão
as diferentes sensibilidades internas e que posição colectiva será tomada.
Explica apenas entender que “as consequências da leitura [de Mein Kampf]
dependerão sempre de quem lê”: “O livro retrata a base de todo o projecto Nazi,
com todas as consequências, não só para os judeus, as primeiras vítimas, como
para toda a humanidade. Retrata a base para a tentativa de extermínio de um
povo no coração da Europa há pouco mais de meio século. A crítica ao livro está
fundamentada dentro dele mesmo, no seu mal, no seu projecto de ódio. Mas é
preciso que quem lê consiga ver isso.”
José Carp não leu Mein Kampf na íntegra,
apenas trechos. “Toda a minha família materna morreu nos campos de
concentração. Toda. Porque haveria eu de ler a confirmação de algo que sei que
aconteceu e porque aconteceu? Para alguém como eu, qual a razão para o ler?”
A E-Primatur diz não saber
apontar qual o perfil de potencial comprador nem que expectativas de vendas
ter. “Não sabemos se o público está preparado para o comprar como documento
histórico”, resume Hugo Xavier, que já publicou Os Mutilados, de Hermann Ungar,
o romance no topo da lista de livros a destruir pelo regime Nazi, e que, no
princípio do ano publicará também Bambi, de Felix Salten, um dos ódios pessoais
de Hitler e igualmente banido durante o III Reich.
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