terça-feira, 2 de junho de 2015

Entrevista DN 29.0515 - J. Rentes de Carvalho


Gosta de ir à Feira do Livro?

Gosto por razões várias, diria até históricas, pois a primeira que visitei foi a de 1947. Tinha dezassete anos, era a primeira vez que vinha a Lisboa, aquilo pareceu-me um mar de gente com montanhas de livros. Fez-me grande impressão. Tenho ideia que era no Rossio, mas não garanto.

Deve ser o autor que de mais longe vem?

Trás-os-Montes não é assim tão longe, mas creio improvável que me convidassem se acontecesse estar em Amsterdam. Felizmente, a Feira coincide com a estadia na aldeia. Devo também assinalar que a Quetzal cuida tão bem de mim que vir à Feira toma aparências de mordomia.

Já teve algum incidente na Feira que o divertisse?

Que me divertisse não será a boa expressão, antes que me surpreendeu e, por segundos, quase me fez perder as estribeiras.

Dois anos atrás, quando acabava de lhe autografar um livro, um cavalheiro de uns quarenta e poucos anos perguntou-me à queima-roupa se determinado personagem de um conto meu era baseado no seu pai que, sabia ele, eu tinha conhecido. De facto assim era, mas num relâmpago dei-me conta que se  respondesse pela afirmativa o ia desgostar, confirmando a fraca reputação do progenitor. Optei pela mentira e foi ele descansado.

As pessoas gostam de lhe dar ideias para os seus livros?

Até hoje ninguém se atreveu. Além de que me pareceria mau gosto, não garanto a delicadeza da resposta.

Qual a memória mais marcante de uma Feira do Livro.

Ver-me ali pela primeira vez em 2010, não como visitante, mas como escritor, o que sinceramente me provocou um sentimento de irrealidade, assim como quem acorda de repente e se vê num palco.

As portuguesas são muito diferentes das do estrangeiro?

Nas feiras estrangeiras nota-se talvez um convívio mais cordial entre visitantes e escritores. Em Portugal as pessoas parecem manter uma certa distância, aquela atitude de não querer incomodar.

 Sobre Pó, Cinzas e Recordações.

O que contém este livro que mais possa surpreender o leitor?

Provavelmente a franqueza, o modo directo e desinibido, o gosto da partilha. Porque ao fim e ao cabo um diário escrito para ser publicado é, de certo modo, uma forma de conversa com um interlocutor imaginário, que se pressupõe capaz de sintonizar na mesma onda.

Há situações que pretendem espicaçar o leitor. Faz de propósito ou são reais?

Se o leitor se sente espicaçado é com ele. Eu simplesmente lhe apresento o meu  dia-a-dia, o relato daquilo que faço, sinto, ou me acontece. Não há ali um propósito de efeito, ou construção. É o passar dos meus dias, é a minha vida.

Porque teima em escrever diários num país que prefere o esquecimento à memória?

Ter escrito apenas dois não me parece teimosia. Este escrevi-o porque me pareceu que assistir à passagem para o novo milénio era um acontecimento invulgar, mas também porque o meu editor holandês achou que valia a pena reincidir.
Sinceramente não me parece que no nosso país se prefira o esquecimento à memórias, diria antes que o café e a praia oferecem atractivos que a solidão da escrita não tem.

Como é que escreve o diário. Todas as semanas?

Tal como o nome indica: todos os dias. O mesmo faço há oito anos com "Tempo Contado", o meu blogue.

Toma notas ou escreve quase em definitivo?

Creio que se escrevesse a partir de notas o leitor ressentiria o fabricado, de maneira que arrisco, mas cuidando que a prosa saia escorreita.

Disfarça os 'protagonistas'?

Nem sequer os nomes disfarço. Não faria sentido, além de que também aí o leitor se ia dar conta da falta de sinceridade, de que não se tratava de uma conversa franca, mas de uma mistificação, uma tentativa de impingir sentimentos, inventar situações. 

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