Mário Crespo - in Jornal Público
02/06/2015
Rafael Marques tem sido a
principal testemunha do que de mais indecente se passa em Angola e, nesse
processo, do que aqui em Portugal também não é decente.
Na tarde de 18 de Dezembro de
2012 a minha mulher, Rafael Marques e eu fomos ao cinema num centro comercial
em Lisboa. Quando regressámos ao carro, estacionado no primeiro piso do parque
subterrâneo, um indivíduo tentou subitamente e com desconcertante nervo forçar
a entrada no banco de trás onde Rafael Marques já estava sentado. O episódio
foi muito rápido. Durou alguns segundos, mas os três reagimos com grande vigor
e o homem, jovem e musculado, que já tinha conseguido meter meio corpo no
interior do carro, acabou por se escapulir com rapidez surpreendente,
desaparecendo entre as colunas e os carros do estacionamento.
O alvo do que quer que se tenha
passado foi, claramente, o Rafael. A minha mulher e eu teríamos sido danos
colaterais que estávamos no local errado, ou certo, à hora certa, ou errada.
Comuniquei às autoridades o que, para todos nós que o vivemos, configurou um
atentado. Na sequência da minha queixa, Rafael Marques foi posto sob a
vigilância de várias polícias especiais do nosso país. Na altura decidimos não
mediatizar o episódio, não só porque qualquer de nós abomina o tabloidismo que
seria inevitável, mas, sobretudo, porque achámos que a segurança de Rafael
Marques em Portugal seria mais bem assegurada com as autoridades a trabalhar
sem pressões mediáticas. A estratégia resultou. O Rafael teve, e espero que
continue a ter, um acompanhamento discreto mas claramente eficaz sempre que vem
a Portugal. Chegou a altura de contar estes detalhes porque Rafael Marques
está, novamente, no meio de uma emboscada. O suplício jurídico a que está a ser
sujeito em Angola, num campo minado de traições e embustes feitos a coberto de
uma lei adaptável aos moldes do ditame político, está a ter grande destaque na
imprensa internacional e a preocupar grupos que zelam pelos direitos humanos e
pela liberdade de expressão na Europa e na América. Infelizmente em Portugal,
com a excepção deste jornal e dos corajosos despachos que a Agência Lusa tem
mantido sobre a tragédia de Rafael Marques, os relatos noticiosos, quando
existem, têm sido extremamente cautelosos, numa estratégia óbvia para não
melindrar o capital angolano que hoje controla a quase totalidade da imprensa
diária em Portugal e tem influência determinante na radiodifusão privada,
incluindo televisões.
Rafael Marques disse-me uma vez
que muita da sua capacidade de intervenção advinha da sua exposição no Jornal
das 9 da SIC Notícias. Mas as suas denúncias sempre causaram grande incómodo em
Portugal. O Governo justifica a complacência para com Angola com os postos de
trabalho dos portugueses emigrados. O mesmo argumento usado no passado para
manter as mais cordiais relações com o apartheid de Pretória, ostracizando o
ANC por causa dos imigrantes na África do Sul. Foi por isso que as relações
entre Lisboa e o ANC sempre foram difíceis. Com o regime do MPLA e o poderio
financeiro angolano, a atitude governamental e empresarial é a mesma dos tempos
em que Mandela estava preso em Robben Island; não se pode ofender os anfitriões
de tanto posto de trabalho, sejam eles quem forem.
No decurso da minha actividade
jornalística, fui admoestado dos melindres que causavam as declarações que
Rafael Marques fazia nos noticiários da minha responsabilidade. Numa das
comunicações que recebi por escrito na sequência de um trabalho sobre os
Diamantes de Sangue chegaram a tentar exigir um exame prévio dos meus
entrevistados. Noutro episódio em que Rafael Marques denunciou no Jornal das 9
o conúbio entre o regime do MPLA e a revista Rumo, que a Impresa de Pinto
Balsemão editava em Luanda, fui advertido dos problemas causados a “colegas”
que estavam a trabalhar em Angola. Foi neste ambiente que a SIC, por razões que
a razão há-de sempre desconhecer, aceitou exibir em prime time, no seu canal
principal, a extraordinária “entrevista” de Henrique Cymerman a José Eduardo
dos Santos. Actualmente, a SIC transmite nos noticiários longos panegíricos
sobre os paraísos angolanos e adoptou como slogan o angolaníssimo “Estamos
Juntos”, saudação decalcada do cumprimento dos guerrilheiros angolanos,
ironicamente, muito popular entre a UNITA. Até ao cancelamento do meu contrato
de trabalho, continuei a dar voz a Rafael Marques e a divulgar as suas
denúncias, fossem elas do saque dos diamantes das Lundas, do regime de
escravatura dos camponeses com os piores índices de expectativa de vida e de
mortalidade infantil do mundo, à bestialidade do tratamento de prisioneiros nos
cárceres de Angola. Prisões com que Rafael Marques está agora ameaçado, depois
de ter caído no embuste de aceitar um acordo judicial com os seus algozes para,
de surpresa, o Tribunal e a Procuradoria abjurarem tudo, fustigando-o com uma
dura e desproporcionada pena, ignorando o entendimento lavrado por escrito em
papel timbrado do Ministério da Justiça da República de Angola, validado por um
juiz, que dava por findo o processo dos Diamantes de Sangue.
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