JOÃO MIGUEL TAVARES 02/06/2015 - in: Jornal Público
Mais parece ter sido o próprio Sócrates a escrever certas partes do programa eleitoral do PS, a partir do estabelecimento de Évora.
Alguns blogues e jornalistas mais
atentos descobriram no programa eleitoral do PS uma medida — incluída num ponto
intitulado “aumentar a exigência e valorizar a actividade política e o
exercício de cargos públicos” — onde se escreve, preto no branco, que o PS
defende “a garantia de protecção e defesa do titular de cargos políticos ou
públicos contra a utilização abusiva de meios judiciais e de mecanismos de
responsabilização como forma de pressão ou condicionamento.”
Actualizado em 3 de Junho de 2015
Num primeiro momento, ainda
pensei que um dos autores do programa, farto de teclar a adiantadas horas,
tivesse investido num roteiro copofónico pelo Bairro Alto e regressado ao Largo
do Rato já com o pensamento entaramelado. Aquilo que ele queria realmente
escrever — pensei eu, por ser a única coisa que fazia algum sentido—– era que o
PS defendia os meios judiciais contra a pressão abusiva do poder político. Mas
não. Apesar do português manhoso que sempre caracteriza a actividade
programática, os socialistas acham mesmo que mansos e pastoris políticos andam
a ser perseguidos por juízes com ferros em brasa. É que, logo a seguir, o PS
também defende “a delimitação rigorosa das situações em que deva existir
responsabilização financeira dos titulares de cargos políticos, reduzindo
situações de discricionariedade ou incerteza”.
Ou seja, existe aqui uma
convicção clara, ao ponto de ser assumida em programa eleitoral, de que a
justiça portuguesa anda a traquejar injustamente os políticos, de um modo
geral, e os políticos socialistas, de modo particular. Em bom rigor, trata-se
de uma narrativa que já vem desde os tempos da Casa Pia. Só que, tendo em conta
o histórico recente do partido e as aventuras do detido 44, esta é uma
narrativa absolutamente inadmissível. Pior: é uma narrativa muitíssimo
perigosa, que exige esclarecimentos imediatos. O que é que querem os
socialistas dizer com aquilo? Será que, como já sugeriu Paula Teixeira da Cruz,
devemos mesmo temer “uma limitação da separação de poderes” caso António Costa
seja eleito?
É que o currículo do PS nesta
matéria não deixa ninguém descansado, enquanto se há coisa de que não se pode
acusar Passos Coelho é de ter andado a colocar obstáculos ao funcionamento da
justiça. António Costa tinha uma absoluta necessidade de se distanciar do
legado socrático e dos seus numerosos discípulos, e, no entanto, continua a
acumular assessores e conselheiros que participaram no pior governo do pós-25
de Abril, onde pilares fundamentais de qualquer democracia, como a justiça e a
comunicação social, foram atacados sem quaisquer escrúpulos. Ainda na semana
passada foi noticiado que Vítor Escária, antigo assessor económico de Sócrates
e um dos 12 autores do programa Uma Década para Portugal, está a ser
investigado por causa da angariação de negócios para o grupo Lena.
Costa sempre fez gala, contra
Seguro, de não repudiar o legado de Sócrates e, um mês depois de vencer as
primárias, Ferro Rodrigues estava a elogiá-lo publicamente no Parlamento, numas
declarações que deram brado. Azar dos Távoras: Sócrates foi preso 20 dias
depois, e assim continua. A adopção da narrativa socrática teve de ser
refreada, só que, infelizmente, o seu espírito sobrevive — porque mais parece
ter sido o próprio Sócrates a escrever certas partes do programa eleitoral do
PS, a partir do estabelecimento de Évora. Tempo não lhe falta — só lhe falta
tudo o resto. Mas isso, pelos vistos, muitos socialistas teimam em não querer
ver.
Jornalista
Actualizado em 3 de Junho de 2015
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