Vale da Porca - Macedo de Cavaleiros |
Roberto Leal |
Foi nesta época que eu
percebi que a música falava dentro de mim mais alto. Qualquer outra coisa, daquelas
disponíveis na aldeia, que eu pensasse fazer na vida, não me preenchia. Eu
franzia o nariz e a boca, e abanando a cabeça, dizia para mim mesmo:
_Não,
não é isso o que eu quero.
E então comecei a
soltar a voz e cantar. Cantava para mim mesmo, tentando lembrar as músicas que
ouvira nas festas. Cantava as canções dos ciganos que passavam de vez em quando
por Vale da Porca , misturadas com pedaços de outras canções que me haviam
ficado nos ouvidos. Não entendia bem o que diziam, mas imitava o som, e sentia-me
livre como eles. Sem terras, sem horários, sem regras, e cantava:
La
pachanga, oléré, la Pachanga
Blai
Tum, blai tum, blai tum…
Depois, passei a querer
cantar para os outros, já sentia o comichão de me exibir, de dar as voltas à
voz. E então, como é que eu ia cantar para os meus amigos sem um palco? Não, eu
tinha que ficar no alto, como nas festas. Então, subia no carro de boi e
cantava.
Hoje, fico tentando
identificar quando teria sido que este sonho do palco começara. Talvez já
tivesse até nascido com ele, pois desde o ventre materno eu já era embalado
pelas cantigas da minha terra natal.
Talvez fosse de quando
ouvia as vozes distantes das mulheres, a lavar a roupa no rio, e a cantar
canções ensinadas por suas mães e avós.
Talvez tivesse começado
em algum entrudo, quando a malta, toda enforretada, andava de casa em casa a
cantar canções alegres, ou ao ouvir os homens a cantar os reis e as janeiras,
pelos canelhos da aldeia. E aí percebo que cada grande acontecimento na aldeia
e na minha vida, tinha uma música
especial. Havia a música dos ciganos, e a sua liberdade, havia a música dos
ceguinhos e a sua dor… Eles passavam pelas terras com suas rabecas e
concertinas, e nos deixavam as suas músicas, em troca de qualquer coisa que
lhes pudéssemos dar. Se fechar os olhos ainda posso ouvir …
“Pelas ruas da
cidade, implorando caridade
ia um pobre
ceguinho...”
E na aldeia, tudo cantava. Cantavam os sinos, em
repiques sonoros de alegria, a chamar o
povo para a missa ou em badaladas profundas de tristeza, quando alguém morria.
Cantavam os pássaros e as águas nas fontes. Cantava-se nas festas e nas
procissões. Cantava-se para ceifar o trigo, para regar os campos, para colher
as batatas e as azeitonas, para a matança do porco, para colorir a dureza do
dia a dia. Enquanto andava às voltas com a burra na nora e regar a horta, só a cantar é que eu conseguia fazer o espírito
voar e o tempo passar mais depressa.
Mas depois, não era só
o canto que me apaixonava, mas também o palco, que naqueles tenros anos se
resumia a um banquinho no qual por vezes eu subia para cantar. O prazer de
sentir que alguém estava ali a ouvir o que eu cantava e que gostava do que
ouvia. O prazer por dar prazer a alguém.
E hoje o meu alimento
continua sendo a música. Não há nada que se compare à emoção que quase nos tira
o fôlego, quando as gaitas de fole arrancam, tentando escalar o tom, em busca
da nota. Minha alma se levanta e segue o rufar dos tambores, o coração a saltar no peito, com o ritmo a entrar por
cada célula do corpo.
E o sentimento de
pertencer a um lugar, a um povo, a uma raça, só me vem daí: da música ! Vem dos
pauliteiros enérgicos e decididos a medir forças numa dança que fala de homens
de coragem. Vem dos sons plangentes da sanfona, a desfiar histórias ancestrais,
a rodar, a rodar, a rodar como a roda do tempo que vem com ela. Vem da
linguagem simples mirandesa, que tanta vez achei rude, mas que hoje soa aos
meus ouvidos como o canto glorioso dos bravos, daqueles que escreveram a história
do meu país. Vem do som de todas as festas de todas as aldeias de Portugal,
vestido com os trajes mais garridos, com as emoções mais puras e a alegria mais
sincera. Vem do fundo da terra, onde se aprofundaram as raízes de tudo o que
somos e que se manteve intacto, como muito pouca coisa se manteve intacta, dos
nossos primeiros passos.
Perdido nos meus
pensamentos, percebo que, mais que o alimento, a música é o ar dos meus
pulmões, é o bater do meu coração, é a alegria da minha alma. Assim, vi que a
música já estava em minha vida desde onde a memória já não alcança. Ou talvez
mais.
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