quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A música na minha vida… (2) - Roberto Leal

Vale da Porca - Macedo de Cavaleiros
Roberto Leal


Foi nesta época que eu percebi que a música falava dentro de mim mais alto. Qualquer outra coisa, daquelas disponíveis na aldeia, que eu pensasse fazer na vida, não me preenchia. Eu franzia o nariz e a boca, e abanando a cabeça, dizia para mim mesmo:
_Não, não é isso o que eu quero.
E então comecei a soltar a voz e cantar. Cantava para mim mesmo, tentando lembrar as músicas que ouvira nas festas. Cantava as canções dos ciganos que passavam de vez em quando por Vale da Porca , misturadas com pedaços de outras canções que me haviam ficado nos ouvidos. Não entendia bem o que diziam, mas imitava o som, e sentia-me livre como eles. Sem terras, sem horários, sem regras, e cantava:

La pachanga, oléré, la Pachanga
La Pachanga, oléré, la Pachanga
Blai Tum, blai tum, blai tum…

Depois, passei a querer cantar para os outros, já sentia o comichão de me exibir, de dar as voltas à voz. E então, como é que eu ia cantar para os meus amigos sem um palco? Não, eu tinha que ficar no alto, como nas festas. Então, subia no carro de boi e cantava.
Hoje, fico tentando identificar quando teria sido que este sonho do palco começara. Talvez já tivesse até nascido com ele, pois desde o ventre materno eu já era embalado pelas cantigas da minha terra natal.
Talvez fosse de quando ouvia as vozes distantes das mulheres, a lavar a roupa no rio, e a cantar canções ensinadas por suas mães e avós.
Talvez tivesse começado em algum entrudo, quando a malta, toda enforretada, andava de casa em casa a cantar canções alegres, ou ao ouvir os homens a cantar os reis e as janeiras, pelos canelhos da aldeia. E aí percebo que cada grande acontecimento na aldeia e na minha vida, tinha uma  música especial. Havia a música dos ciganos, e a sua liberdade, havia a música dos ceguinhos e a sua dor… Eles passavam pelas terras com suas rabecas e concertinas, e nos deixavam as suas músicas, em troca de qualquer coisa que lhes pudéssemos dar. Se fechar os olhos ainda posso ouvir … 
“Pelas ruas da cidade, implorando caridade
ia um pobre ceguinho...”

E na aldeia, tudo cantava. Cantavam os sinos, em repiques  sonoros de alegria, a chamar o povo para a missa ou em badaladas profundas de tristeza, quando alguém morria. Cantavam os pássaros e as águas nas fontes. Cantava-se nas festas e nas procissões. Cantava-se para ceifar o trigo, para regar os campos, para colher as batatas e as azeitonas, para a matança do porco, para colorir a dureza do dia a dia. Enquanto andava às voltas com a burra na nora  e regar a horta, só a  cantar é que eu conseguia fazer o espírito voar e o tempo passar mais depressa.
Mas depois, não era só o canto que me apaixonava, mas também o palco, que naqueles tenros anos se resumia a um banquinho no qual por vezes eu subia para cantar. O prazer de sentir que alguém estava ali a ouvir o que eu cantava e que gostava do que ouvia. O prazer por dar prazer a alguém.
E hoje o meu alimento continua sendo a música. Não há nada que se compare à emoção que quase nos tira o fôlego, quando as gaitas de fole arrancam, tentando escalar o tom, em busca da nota. Minha alma se levanta e segue o rufar dos tambores,  o coração  a saltar no peito, com o ritmo a entrar por cada célula do corpo.
E o sentimento de pertencer a um lugar, a um povo, a uma raça, só me vem daí: da música ! Vem dos pauliteiros enérgicos e decididos a medir forças numa dança que fala de homens de coragem. Vem dos sons plangentes da sanfona, a desfiar histórias ancestrais, a rodar, a rodar, a rodar como a roda do tempo que vem com ela. Vem da linguagem simples mirandesa, que tanta vez achei rude, mas que hoje soa aos meus ouvidos como o canto glorioso dos bravos, daqueles que escreveram a história do meu país. Vem do som de todas as festas de todas as aldeias de Portugal, vestido com os trajes mais garridos, com as emoções mais puras e a alegria mais sincera. Vem do fundo da terra, onde se aprofundaram as raízes de tudo o que somos e que se manteve intacto, como muito pouca coisa se manteve intacta, dos nossos primeiros passos.
Perdido nos meus pensamentos, percebo que, mais que o alimento, a música é o ar dos meus pulmões, é o bater do meu coração, é a alegria da minha alma. Assim, vi que a música já estava em minha vida desde onde a memória já não alcança. Ou talvez mais.

Roberto Leal


          

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura, Exoterra, 2011







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