Roberto Leal |
Meu maior alimento era
a música. Ao ouvir qualquer nota ao longe, o coração já ficava aos saltos,
tamanha a excitação. Não havia fome nem distâncias que me chegassem.
Tentava chegar às
festas pelas 3, 4 horas da tarde, ainda a tempo de fazer algum amigo novo ou
encontrar alguém que me comprasse algo de comer. No entanto, nem que me dessem
uma sandes de vitela assada, o que só se podia pensar em comer em dia de festa,
teria mais prazer do que simplesmente estar ali, a ouvir a música.
Nesse dia, porém, o prazer era diferente. Eu
não ia apenas atrás de uma festa. Por isso, saí de Vale da Porca já tarde,
quando a claridade já dava suas despedidas, pois aquele que eu procurava, só
iria se apresentar à noite. Meu destino: Limãos !
Ao chegar a Limãos, fui
seguindo o som do alto-falante. Como àquela época não havia energia eléctrica,
os mordomos das festas providenciavam um gerador, por isso a festa tinha aquele
encanto, com a música e uma profusão de luzes muito coloridas, que não se via
no resto do ano.
Uma confusão de cheiros
e sons enchia o ar: os doces, o pão de chouriço, a vitela assada, a algazarra
dos miúdos a correr de um lado para o outro, o alto-falante valente, a chamar o
povo, os copos de vinho, as vozes excitadas da rapaziada. Um turbilhão de sensações
que punha toda a adrenalina a correr, os olhos a tentar absorver e fotografar
para sempre aquela maravilha! E quando havia banda? Meu Deus, que alegria.
Hipnotizado, eu seguia atrás dela por onde fosse. Os músicos, como os invejava,
eram verdadeiros heróis !
De repente, reconheci
aquela voz. Corri para o centro da festa, para estar mais perto, mas não podia
ficar perto demais, para não distraí-lo. Fiquei então ali, meio escondido atrás
do pau de uma barraca de doces, e mesmo sem poder vê-lo, estava feliz da vida,
ouvindo a música e me esquecendo do tempo. E, é óbvio, a torcer por ele.
Era uma desgarrada!
Quando os cantores são bons no desafio, a cantoria vai pela noite adentro e nem
se dá por ela. E eles lá, com as línguas e as cordas afiadas.
De repente,
alguém me chama:
_Então, Toninho! Andei por todo o lado à tua procura, rapaz !
_ Estive sempre aqui, Ambrósio.
_Anda ! Vamos embora, que já se faz tarde.
_Não, quero ficar até o fim.
_E tu lá sabes quando isto terá fim? Eles podem estar a cantar duas noites e dois
dias seguidos.
_
Mas eu quero ver !
_
Já sabes que é sempre nosso pai quem ganha... queres ver o que ?
Mas naquela noite quis
ver mesmo até o fim, mesmo contra a insistência do meu irmão. Algo dentro de
mim estava a borbulhar, o encantamento era diferente das outras vezes, quando
eu era somente espectador. Desta vez, eu queria estar lá. Foi um sentimento
novo, que eu não sabia de onde vinha. Parecia que não era meu. Era como uma voz
ao longe a me chamar, uma lembrança. Mas uma lembrança de algo que não
acontecera ainda.
O meu pai era o meu
grande ídolo. Vê-lo ali, a cantar a desgarrada, enchia o meu peito de orgulho.
Admirava-o por tudo, porque ele era tudo para nós. Conseguia ter tempo para
tudo, para plantar e arar e colher, para arrancar dentes às pessoas, para ser o
barbeiro, ser o mestre das desgarradas, mesmo com uma vida cheia de
preocupações. Mas, ele era mestre em suavizar os momentos mais difíceis. Quando
eu andava descalço, no frio, pela aldeia, meu pai, ao invés de lamentar por me
ver desse jeito, dizia:
- Isso é bom, meu filho, porque a gente se
acostuma a pisar em qualquer lugar.
E era assim tudo o que vinha dele. Dizem que
se pode medir o tamanho de um homem, pelo tamanho dos seus sonhos. Mas, se os
sonhos de um homem forem com coisas fora deste mundo, o seu tamanho será maior
que o mundo. E nada que aconteça neste mundo poderá atingir os seus sonhos.
Assim, ele ensinou-me a ver a neve como um
tapete. Não via nela o frio, mas algo puro e bonito de ser pisado. Então eu
pisava a neve com beleza e não com sofrimento.
Em casa, com seu
bandolim, ele cantava e nos contava lindas histórias, as mais lindas possíveis.
Pequeno, eu comecei a intuir que palavras viram versos, mas, claro, não sabia
juntá-las de forma poética. Eu às vezes ia para a beira do rio, para um pomar,
ia ver o gado, e cada situação dessas fazia-me sentir sensações maravilhosas,
que mais tarde se tornariam letras de música.
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