quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A música na minha vida… (1) - Roberto Leal

Vale da Porca - Macedo de Cavaleiros
Roberto Leal
Santo Deus ! Era verão novamente ! Estava fartinho de chuva e de frio. Chegara o tempo da alegria, da fartura, do cheiro das frutas. Mas, o melhor de tudo… o tempo das festas! Como sabia que era alegria de pouca dura, queria ir a todas elas e, já sendo grandinho, tinha já 8 anos, fugia sozinho para as aldeias vizinhas, onde soubesse que ia haver uma. Cada aldeia só festejava uma vez ao ano, geralmente no dia do seu Santo Padroeiro. Eu achava pouco. E lá ia eu, assim... sem dinheiro, sem nada. Qual era o meu alimento? Amoras pelos campos... frutas silvestres... às vezes, quando a fome era insuportável, roubava uma maçã de alguma macieira à beira do caminho. E lá ia eu estrada afora, a fingir que não tinha fome.
Meu maior alimento era a música. Ao ouvir qualquer nota ao longe, o coração já ficava aos saltos, tamanha a excitação. Não havia fome nem distâncias que me chegassem.
Tentava chegar às festas pelas 3, 4 horas da tarde, ainda a tempo de fazer algum amigo novo ou encontrar alguém que me comprasse algo de comer. No entanto, nem que me dessem uma sandes de vitela assada, o que só se podia pensar em comer em dia de festa, teria mais prazer do que simplesmente estar ali, a ouvir a música.
 Nesse dia, porém, o prazer era diferente. Eu não ia apenas atrás de uma festa. Por isso, saí de Vale da Porca já tarde, quando a claridade já dava suas despedidas, pois aquele que eu procurava, só iria se apresentar à noite. Meu destino: Limãos !
Ao chegar a Limãos, fui seguindo o som do alto-falante. Como àquela época não havia energia eléctrica, os mordomos das festas providenciavam um gerador, por isso a festa tinha aquele encanto, com a música e uma profusão de luzes muito coloridas, que não se via no resto do ano.
Uma confusão de cheiros e sons enchia o ar: os doces, o pão de chouriço, a vitela assada, a algazarra dos miúdos a correr de um lado para o outro, o alto-falante valente, a chamar o povo, os copos de vinho, as vozes excitadas da rapaziada. Um turbilhão de sensações que punha toda a adrenalina a correr, os olhos a tentar absorver e fotografar para sempre aquela maravilha! E quando havia banda? Meu Deus, que alegria. Hipnotizado, eu seguia atrás dela por onde fosse. Os músicos, como os invejava, eram verdadeiros heróis !
De repente, reconheci aquela voz. Corri para o centro da festa, para estar mais perto, mas não podia ficar perto demais, para não distraí-lo. Fiquei então ali, meio escondido atrás do pau de uma barraca de doces, e mesmo sem poder vê-lo, estava feliz da vida, ouvindo a música e me esquecendo do tempo. E, é óbvio, a torcer por ele.
Era uma desgarrada! Quando os cantores são bons no desafio, a cantoria vai pela noite adentro e nem se dá por ela. E eles lá, com as línguas e as cordas afiadas.
   De repente,  alguém me chama:
   _Então, Toninho!  Andei por todo o lado à tua procura, rapaz !
  _ Estive sempre aqui, Ambrósio.
   _Anda ! Vamos embora, que já se faz tarde.
   _Não, quero ficar até o fim.
   _E tu lá sabes quando isto terá fim?  Eles podem estar a cantar duas noites e dois dias seguidos.
_ Mas eu quero ver !
_ Já sabes que é sempre nosso pai quem ganha... queres ver o que ?
Mas naquela noite quis ver mesmo até o fim, mesmo contra a insistência do meu irmão. Algo dentro de mim estava a borbulhar, o encantamento era diferente das outras vezes, quando eu era somente espectador. Desta vez, eu queria estar lá. Foi um sentimento novo, que eu não sabia de onde vinha. Parecia que não era meu. Era como uma voz ao longe a me chamar, uma lembrança. Mas uma lembrança de algo que não acontecera ainda.
O meu pai era o meu grande ídolo. Vê-lo ali, a cantar a desgarrada, enchia o meu peito de orgulho. Admirava-o por tudo, porque ele era tudo para nós. Conseguia ter tempo para tudo, para plantar e arar e colher, para arrancar dentes às pessoas, para ser o barbeiro, ser o mestre das desgarradas, mesmo com uma vida cheia de preocupações. Mas, ele era mestre em suavizar os momentos mais difíceis. Quando eu andava descalço, no frio, pela aldeia, meu pai, ao invés de lamentar por me ver desse jeito, dizia:
   - Isso é bom, meu filho, porque a gente se acostuma a pisar em qualquer lugar.
   E era assim tudo o que vinha dele. Dizem que se pode medir o tamanho de um homem, pelo tamanho dos seus sonhos. Mas, se os sonhos de um homem forem com coisas fora deste mundo, o seu tamanho será maior que o mundo. E nada que aconteça neste mundo poderá atingir os seus sonhos.
 Assim, ele ensinou-me a ver a neve como um tapete. Não via nela o frio, mas algo puro e bonito de ser pisado. Então eu pisava a neve com beleza e não com sofrimento.

Em casa, com seu bandolim, ele cantava e nos contava lindas histórias, as mais lindas possíveis. Pequeno, eu comecei a intuir que palavras viram versos, mas, claro, não sabia juntá-las de forma poética. Eu às vezes ia para a beira do rio, para um pomar, ia ver o gado, e cada situação dessas fazia-me sentir sensações maravilhosas, que mais tarde se tornariam letras de música. 

(continua)


          

in:Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura, Exoterra, 2011

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