sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

ENTRE EFÉMERO E ETERNO ROMAGEM AO CRISTAL DA MANHÃ (1) - João de Sá


Por João de Sá

Vou de longada. Serenamente. Pautam-me a marcha, em vez de ponteiros de relógio, as agulhas dos pinheiros. Estou fora do tempo. Uma exuberante sensação de liberdade. Só a absorvente envolvência do espaço a abrir-se em matizes, odores e sons.
Conheço os caminhos e eles conhecem-me, dum pormenor de musgo ao desamparo de uma flor silvestre. Foram longos anos de convívio em remotas idades de bilharda, pião e estrelas de papel presas a um barbante enleado nas mãos, a desafiarem os repelões da ventania, e eu, ufano, como se estivesse concebendo astros verdadeiros, tornado um demiurgo a constelar uma abóbada celeste da grandeza dos mais nobres anseios do meu pequeno coração.
Viajar na minha terra é algo mais do que a descoberta de mim próprio, esse caudal tumultuoso de pensamentos, volições e sentimentos enfeixados, por vezes em conflito, sem a bênção de uma foz que os apazigúe. Daí que tenha prescindido de traçados e projectos. É uma viagem sem arquitectura, comandada pelas subtilezas do espírito, pelo que nele há de imprevisível, já que o fundamental ocorre nas regiões interiores. As pedras dos cimos, que o esmeril dos ventos aguçou e os sóis enrubesceram, fazem parte de um jogo sem regras mas de surpreendente encantamento e beleza. Passam por elas as veredas que conduzem ao Todo, que pressinto perto, quase à minha beira, numa nesga de terra natal, como se o ôntico e o ontológico heideggerianos fossem, paradoxalmente, faces do mesmo espelho.
De todo o modo, e para abreviar, o regresso é sempre um conhecimento enriquecido. O solo pátrio constitui o único refúgio ecológico para uma fecunda meditação. Trata-se da essência do humano, do uno, de um enraizamento que banha de profundo significado a minha solitária peregrinação.
A despeito desta adivinhada plenitude, sei o que me espera. É que já não há avó, mãe, irmãos, amigos, casa e glicínia. Mesmo assim prossigo a minha vagueação e peço ao meu agro nativo palavras eficazes, unguentos de magia contra a morte e o esquecimento. E tudo voltará a ser verdade ainda que inexistente. A luz excederá o pavio trémulo da vela, para se tornar pincel a colorir uma cotovia num ramo amanhecente de lilás.
Sei que só aqui posso dobrar o cabo do Sonho e unir oceanos desavindos. Aqui posso ungir-me de claridade e sentir coração e cabeça vibrarem em uníssono com os ritmos milenários da terra. Este meu deambular pode bem ser a hora alta do prodígio: incêndio de alba na expressão surpreendente da ausência; minhas mãos vacilantes afagando formas de uma casa extinta, no cume da mágoa.
A minha terra vicejante e esbelta, acolhedora e terna, com requebros femininos, mas combinação perfeita da Região Nordestina (não fora ela o seu olhar a inquirir o longe!), onde emudeceram as chiadas dos carros de bois, o farfalhar das charruas e das enxadas a arrotearem os campos; onde há leiras abandonadas propícias ao medrar das silvas e dos cardos e ao definhamento da esperança dos homens. E que lanhos de dor encoberta na pungência do seu rosto, que altivez e dignidade no sofrimento sem medida, que amargura silenciosa nos gestos que se erguem para mim e parecem estreitar-me, trazendo-me indícios de esplendorosas manhãs.
À medida que caminho, um fundo desejo de gritar aos transeuntes desatentos: esta é a minha terra bem-ditosa! Para que todos conheçam a singularidade do meu enraizamento. Para que o meu brado encontre eco nos seus corações.
Sei que a romagem tem de ser feita vagarosamente. Com a veneração de quem cumpre um ritual: ler um poema, contemplar um quadro, ouvir uma sinfonia. A pressa é inimiga do belo. Embacia o cristal da manhã, reprime o fluir das emoções. É preciso que contemplar e meditar se conjuguem numa síntese perfeita. É esta a regra de ouro que vai reger as passadas de acaso da minha digressão.
Caminho, indiferente às línguas de fogo do sol que se reacendem nos repelões do vento – diapasão a acertar as primeiras notas da apoteose que há-de povoar de asas e cantos a claridade faiscante do meio-dia.
As ruas estão desimpedidas e desertas, limpas, ladeadas de canteiros onde as rosas virão a escrever madrigais a uma primavera de pródigos sortilégios. Candeeiros de apurado gosto, árvores jovens e cómodos bancos a apelarem a uma pausa (quem os projectou sabia bem o valor das breves suspensões ao longo das jornadas, para que as coisas se harmonizem com a alma). Pérgulas engalanadas de nervuras seivosas e artísticos painéis de azulejos a sugerirem um cotejo entre ontem e hoje: o que está ante os nossos olhos e o que os antepassados presenciaram.
Um bando de pombas sulca de brancura o céu, e desaparece para os lados da Portela. Em breve sobrevoará o Senhor da Veiga onde iniciei o meu percurso, manhã a ensaiar os primeiros passos, surpreendido com a ampliação e melhoramentos feitos em tão pouco tempo no cemitério da Vila. Também os mortos – nossas sombras fiéis, ou seremos nós as sombras deles? – são merecedores de atenção. Foi-lhes concedido um espaço onde perpassa um gesto de reverência e enternecimento, um espaço com a exacta dimensão da nossa saudade.
À medida que caminho, vou presenciando o muito que se fez no centro histórico. Obra de inteligência e sensibilidade. O respeito pela tradição. Para que não acordemos, um dia, esquecidos do que somos. Não basta saber que existe História, que todos nos movemos dentro dela. É preciso não descaracterizar, não delir os sinais – única forma de esclarecer o presente e garantir o futuro; “trabalhar de tal maneira que a memória colectiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. Tranquilizo-me por reconhecer que estão a ser cumpridos estes preceitos. Pressente-se um gesto generoso a impedir, por todos os meios, que a sonata do passado emudeça para sempre no excesso de ruído do tempo que passa.
À minha frente está o Posto de Turismo. Veio substituir um velho casarão quase coevo das Descobertas. Respeitaram-se as linhas gerais da traça primitiva. Reconhece-se, na severidade do granito, a fisionomia da construção anterior: as cercaduras das janelas com portadas em guilhotina, as consolas, o tipo da telha, o gradeamento de madeira do patim. Construção “cubista”, num proporcionado jogo de volumes, quadrando, à maravilha, dadas as relações entre as partes e o todo, traçado e materiais utilizados, com o edifício do Museu, o vetusto palácio dos Aguilares, que lhe fica em frente. Dir-se-ia ter-se anulado a distância entre eles, como se tivessem arrebatado o espaço envolvente e dessem lugar a uma única corporalidade.
Subo as escadas do Museu. Faço-o sempre com solenidade e reverência. Preparo-me para uma viagem no passado, sem olvidar o meu tempo, ao franquear as portas desta singela casa da memória. Raul Correia, perpetuado no bronze no larguinho ajardinado, em frente, percebeu a importância da criação deste pequeno templo das Musas: preservar o artístico, o histórico, o duradouro.
Cá estão amoravelmente dispostos os múltiplos objectos que constituem um apreciável património espiritual, no seu mutismo, na sua fragilidade (cabe-nos a nós fazê-los falar e doar-lhes perpetuidade), mas indispensáveis para sabermos o que os nossos antepassados idearam e fizeram, e a razão por que idealizamos e fazemos de maneira diferente.

As gerações passam, o património desta índole permanece enquanto o procurarmos para definir a nossa identidade. Elos de uma ligação simbólica, com eles podemos apontar à construção do sentido, para que saibamos quem somos sem nos diluirmos num passado que já não é, nem num futuro que ainda não existe.
Prossigo a viagem. Atinjo a Praça da República. Imponho silêncio ao tempo transcorrido: voz do que perdeu a voz e só já em íntimo silêncio se exprime.
Estou na praça, na de hoje, já que a de ontem não passa de uma enternecida ficção. É como se contemplasse um retábulo que tem sido restaurado com mestria e prudência: pincelada aqui, retoque além, esmero artístico por todo o lado. Preocupação dominante: evitar a fácies do irreconhecível. É que se trata do espaço mais nobre do burgo. Será sempre o seu órgão pulsátil, centro para onde convergem todas as artérias, a ágora onde se acertam os relógios das palavras pelas cintilações de Vésper, já que é aqui que se ajustam partidas e se recortam as diferentes facetas do quotidiano na sua misteriosa relação com o tempo.
Retomo a caminhada. Depara-se-me, à medida que avanço, uma das componentes do Centro Cultural, a que constitui um apelo às gentes da Praça para que se aproximem e aprendam a desvendar o que poderá desvendá-las. A sintaxe da sua patente morfologia extravasa dos moldes fixados e como que se vai ampliando indefinidamente, sugerindo múltiplas leituras desta espacialidade funcional estruturada por uma simbólica de inusitadas articulações. Mais tarde voltarei a esta obra de tão prodigiosa significação.
          
Estou no Largo de Santa Luzia. Atravesso o espaço valorizado por jardins de superlativo bom gosto. Bancos espaçosos, de novo a solicitarem o repouso do corpo e a actividade da memória e da imaginação. Contemplo o painel de azulejos que ostenta a antiga escola e a capela que fora templo, em recuadas eras, do culto sarraceno. Não há qualquer legenda. Nem é necessária. É uma forma subtil de sublinhar o que se não devia ter feito: restaurar não é desfigurar.

Aproximo-me do monumento a D. Dinis. Preito do “verde pyno” ao promulgador da carta de foro – raro documento pelo inabitual das prerrogativas outorgadas. São páginas que honram as gentes do lugar e atestam, historicamente, o momento preciso em que uma obscura Póvoa deu lugar a uma florescente Vila Flor.

(Continua)


Sem comentários:

Enviar um comentário