Por João de Sá
Vou de longada. Serenamente.
Pautam-me a marcha, em vez de ponteiros de relógio, as agulhas dos pinheiros.
Estou fora do tempo. Uma exuberante sensação de liberdade. Só a absorvente
envolvência do espaço a abrir-se em matizes, odores e sons.
Conheço os caminhos e eles
conhecem-me, dum pormenor de musgo ao desamparo de uma flor silvestre. Foram
longos anos de convívio em remotas idades de bilharda, pião e estrelas de papel
presas a um barbante enleado nas mãos, a desafiarem os repelões da ventania, e
eu, ufano, como se estivesse concebendo astros verdadeiros, tornado um demiurgo
a constelar uma abóbada celeste da grandeza dos mais nobres anseios do meu
pequeno coração.
Viajar na minha terra é algo mais
do que a descoberta de mim próprio, esse caudal tumultuoso de pensamentos,
volições e sentimentos enfeixados, por vezes em conflito, sem a bênção de uma
foz que os apazigúe. Daí que tenha prescindido de traçados e projectos. É uma
viagem sem arquitectura, comandada pelas subtilezas do espírito, pelo que nele
há de imprevisível, já que o fundamental ocorre nas regiões interiores. As
pedras dos cimos, que o esmeril dos ventos aguçou e os sóis enrubesceram, fazem
parte de um jogo sem regras mas de surpreendente encantamento e beleza. Passam
por elas as veredas que conduzem ao Todo, que pressinto perto, quase à minha
beira, numa nesga de terra natal, como se o ôntico e o ontológico
heideggerianos fossem, paradoxalmente, faces do mesmo espelho.
De todo o modo, e para abreviar,
o regresso é sempre um conhecimento enriquecido. O solo pátrio constitui o
único refúgio ecológico para uma fecunda meditação. Trata-se da essência do
humano, do uno, de um enraizamento que banha de profundo significado a minha
solitária peregrinação.
A despeito desta adivinhada
plenitude, sei o que me espera. É que já não há avó, mãe, irmãos, amigos, casa
e glicínia. Mesmo assim prossigo a minha vagueação e peço ao meu agro nativo
palavras eficazes, unguentos de magia contra a morte e o esquecimento. E tudo
voltará a ser verdade ainda que inexistente. A luz excederá o pavio trémulo da
vela, para se tornar pincel a colorir uma cotovia num ramo amanhecente de
lilás.
Sei que só aqui posso dobrar o
cabo do Sonho e unir oceanos desavindos. Aqui posso ungir-me de claridade e
sentir coração e cabeça vibrarem em uníssono com os ritmos milenários da terra.
Este meu deambular pode bem ser a hora alta do prodígio: incêndio de alba na
expressão surpreendente da ausência; minhas mãos vacilantes afagando formas de
uma casa extinta, no cume da mágoa.
A minha terra vicejante e
esbelta, acolhedora e terna, com requebros femininos, mas combinação perfeita
da Região Nordestina (não fora ela o seu olhar a inquirir o longe!), onde
emudeceram as chiadas dos carros de bois, o farfalhar das charruas e das
enxadas a arrotearem os campos; onde há leiras abandonadas propícias ao medrar
das silvas e dos cardos e ao definhamento da esperança dos homens. E que lanhos
de dor encoberta na pungência do seu rosto, que altivez e dignidade no
sofrimento sem medida, que amargura silenciosa nos gestos que se erguem para
mim e parecem estreitar-me, trazendo-me indícios de esplendorosas manhãs.
À medida que caminho, um fundo
desejo de gritar aos transeuntes desatentos: esta é a minha terra bem-ditosa!
Para que todos conheçam a singularidade do meu enraizamento. Para que o meu
brado encontre eco nos seus corações.
Sei que a romagem tem de ser
feita vagarosamente. Com a veneração de quem cumpre um ritual: ler um poema,
contemplar um quadro, ouvir uma sinfonia. A pressa é inimiga do belo. Embacia o
cristal da manhã, reprime o fluir das emoções. É preciso que contemplar e
meditar se conjuguem numa síntese perfeita. É esta a regra de ouro que vai
reger as passadas de acaso da minha digressão.
Caminho, indiferente às línguas
de fogo do sol que se reacendem nos repelões do vento – diapasão a acertar as
primeiras notas da apoteose que há-de povoar de asas e cantos a claridade
faiscante do meio-dia.
As ruas estão desimpedidas e
desertas, limpas, ladeadas de canteiros onde as rosas virão a escrever
madrigais a uma primavera de pródigos sortilégios. Candeeiros de apurado gosto,
árvores jovens e cómodos bancos a apelarem a uma pausa (quem os projectou sabia
bem o valor das breves suspensões ao longo das jornadas, para que as coisas se
harmonizem com a alma). Pérgulas engalanadas de nervuras seivosas e artísticos
painéis de azulejos a sugerirem um cotejo entre ontem e hoje: o que está ante
os nossos olhos e o que os antepassados presenciaram.
Um bando de pombas sulca de
brancura o céu, e desaparece para os lados da Portela. Em breve sobrevoará o
Senhor da Veiga onde iniciei o meu percurso, manhã a ensaiar os primeiros
passos, surpreendido com a ampliação e melhoramentos feitos em tão pouco tempo
no cemitério da Vila. Também os mortos – nossas sombras fiéis, ou seremos nós
as sombras deles? – são merecedores de atenção. Foi-lhes concedido um espaço
onde perpassa um gesto de reverência e enternecimento, um espaço com a exacta
dimensão da nossa saudade.
À medida que caminho, vou
presenciando o muito que se fez no centro histórico. Obra de inteligência e
sensibilidade. O respeito pela tradição. Para que não acordemos, um dia,
esquecidos do que somos. Não basta saber que existe História, que todos nos
movemos dentro dela. É preciso não descaracterizar, não delir os sinais – única
forma de esclarecer o presente e garantir o futuro; “trabalhar de tal maneira
que a memória colectiva sirva para a libertação e não para a servidão dos
homens”. Tranquilizo-me por reconhecer que estão a ser cumpridos estes
preceitos. Pressente-se um gesto generoso a impedir, por todos os meios, que a
sonata do passado emudeça para sempre no excesso de ruído do tempo que passa.
À minha frente está o Posto de
Turismo. Veio substituir um velho casarão quase coevo das Descobertas.
Respeitaram-se as linhas gerais da traça primitiva. Reconhece-se, na severidade
do granito, a fisionomia da construção anterior: as cercaduras das janelas com
portadas em guilhotina, as consolas, o tipo da telha, o gradeamento de madeira
do patim. Construção “cubista”, num proporcionado jogo de volumes, quadrando, à
maravilha, dadas as relações entre as partes e o todo, traçado e materiais
utilizados, com o edifício do Museu, o vetusto palácio dos Aguilares, que lhe fica
em frente. Dir-se-ia ter-se anulado a distância entre eles, como se tivessem
arrebatado o espaço envolvente e dessem lugar a uma única corporalidade.
Subo as escadas do Museu. Faço-o
sempre com solenidade e reverência. Preparo-me para uma viagem no passado, sem
olvidar o meu tempo, ao franquear as portas desta singela casa da memória. Raul
Correia, perpetuado no bronze no larguinho ajardinado, em frente, percebeu a
importância da criação deste pequeno templo das Musas: preservar o artístico, o
histórico, o duradouro.
Cá estão amoravelmente dispostos
os múltiplos objectos que constituem um apreciável património espiritual, no
seu mutismo, na sua fragilidade (cabe-nos a nós fazê-los falar e doar-lhes
perpetuidade), mas indispensáveis para sabermos o que os nossos antepassados
idearam e fizeram, e a razão por que idealizamos e fazemos de maneira
diferente.
As gerações passam, o património
desta índole permanece enquanto o procurarmos para definir a nossa identidade.
Elos de uma ligação simbólica, com eles podemos apontar à construção do
sentido, para que saibamos quem somos sem nos diluirmos num passado que já não
é, nem num futuro que ainda não existe.
Prossigo a viagem. Atinjo a Praça
da República. Imponho silêncio ao tempo transcorrido: voz do que perdeu a voz e
só já em íntimo silêncio se exprime.
Estou na praça, na de hoje, já
que a de ontem não passa de uma enternecida ficção. É como se contemplasse um
retábulo que tem sido restaurado com mestria e prudência: pincelada aqui,
retoque além, esmero artístico por todo o lado. Preocupação dominante: evitar a
fácies do irreconhecível. É que se trata do espaço mais nobre do burgo. Será
sempre o seu órgão pulsátil, centro para onde convergem todas as artérias, a
ágora onde se acertam os relógios das palavras pelas cintilações de Vésper, já
que é aqui que se ajustam partidas e se recortam as diferentes facetas do
quotidiano na sua misteriosa relação com o tempo.
Retomo a caminhada. Depara-se-me,
à medida que avanço, uma das componentes do Centro Cultural, a que constitui um
apelo às gentes da Praça para que se aproximem e aprendam a desvendar o que
poderá desvendá-las. A sintaxe da sua patente morfologia extravasa dos moldes
fixados e como que se vai ampliando indefinidamente, sugerindo múltiplas
leituras desta espacialidade funcional estruturada por uma simbólica de
inusitadas articulações. Mais tarde voltarei a esta obra de tão prodigiosa
significação.
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Estou no Largo de Santa Luzia.
Atravesso o espaço valorizado por jardins de superlativo bom gosto. Bancos
espaçosos, de novo a solicitarem o repouso do corpo e a actividade da memória e
da imaginação. Contemplo o painel de azulejos que ostenta a antiga escola e a
capela que fora templo, em recuadas eras, do culto sarraceno. Não há qualquer
legenda. Nem é necessária. É uma forma subtil de sublinhar o que se não devia
ter feito: restaurar não é desfigurar.
Aproximo-me do monumento a D.
Dinis. Preito do “verde pyno” ao promulgador da carta de foro – raro documento
pelo inabitual das prerrogativas outorgadas. São páginas que honram as gentes
do lugar e atestam, historicamente, o momento preciso em que uma obscura Póvoa
deu lugar a uma florescente Vila Flor.
(Continua)
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