Por João de Sá
O insigne monarca, em trânsito
para Trancoso a fim de firmar conúbio com Isabel de Aragão, era trovador de
subido merecimento. O dom da poesia sobrelevava nele as insígnias do poder. As
mãos afeitas a idealizarem caravelas voltam-se para a terra e traçam,
amorosamente, os contornos de uma flor. Em vez do rei surge o vate rendido ao
painel paradisíaco de fontes e bosques, de uma fluidez de horizontes
vastíssimos e apelantes, que bem podia ser erguido como cenário de futura
cantiga de amigo. Emocionado com a beleza do lugar, trocou-lhe o prosaico nome
de Póvoa de Além do Sabor, por outro mais de acordo com a substância do seu
ridente existir – VILA FLOR.
Não conheço outra terra que se
vanglorie do privilégio de ter sido baptizada por um rei. Visitando-a
demoradamente, como eu o estou fazendo, atingiremos melhor o sentido do
Monarca-lavrador ao despir manto e depor ceptro e coroa, em plena serrania,
para uma entrega plena ao fascínio do espaço descoberto.
Mas o instante é de
transfiguração. Prodigioso equilíbrio de força e leveza. O bloco de pedra a
desdobrar-se em pergaminho de foral, ou quilha de navio, ou jeito de arado, ou
cantar de amor… Vou folheando um livro lido e relido. Sei-o de cor. Contudo
domina-me a estranha impressão de vir aqui pela primeira vez, o primeiro
contacto com a caligrafia que só o amor estrutura e só com amor se escreve…
Emergindo da enorme massa de pedra,
superando-a prodigiosamente, a figura egrégia do “Plantador de naus a haver”
torna-se linha de força para onde converge a plasticidade do conjunto.
Sublimação da matéria. Somos todos nós, sob as insígnias da realeza que nos
outorgou o ensejo de olharmos o Sul, o futuro, ufanos do direito de cidadania
que nos foi concedido.
Avenida fora, avanço na direcção
dos Paços do Concelho. Nos confins do horizonte os contornos imprecisos do
“Frade” a quererem arrastar-me para o passado. No entanto, oponho-me firmemente,
já que o momento só de presente se tece.
Passo ao lado da edificação da
actual Biblioteca: vidro, cimento e ferro. Não acho estes materiais condizentes
com os inefáveis seres chamados livros. Nada me transmitem, não foi esta a
minha primeira ara de culto ao livro. Provenho da antiga, primeiro num salão do
Município, depois no velho casarão do Museu.
Quanta recordação! O prazer de
segurar um livro nas mãos estremecentes. Uma súbita ansiedade abalando-me todo
o corpo. O aperceber-me de que estava na presença de um luminoso arco de ponte
a vencer as idades. Às vezes, a meio da noite, as palavras erguiam-se do papel
que já fora árvore, pássaros esvoaçantes em busca do galho perdido, e eu
acordava e corria a acender o candeeiro de petróleo, para um convívio com seres
reais que durava até ao amanhecer. Quanto lhes devo. Foram a minha primeira
porta para a Vida.
Confronto-me, perto, com o
canteiro da meia-laranja alindado e engrandecido. Saudades frementes. Desejos
de me sentar num dos bancos, ficar por aqui, como outrora nas noites de passeio
na Avenida, em que anelava diluir-me no céu estrelado e ir em busca da outra
metade para atingir uma esfera perfeita, um valor supremo que me fizesse
ascender ao eterno e me libertasse do efémero.
Eis o Centro de Cultura. Cá está,
na sua engenhosa articulação de linhas e volumes, na sua compleição de obra
aberta, à espera da complementaridade que cada cidadão bem intencionado queira
conceder-lhe.
Parece ter-se conseguido aqui,
através do ritmo e da proporcionalidade de um hábil jogo de formas – arcarias,
colunas, capitéis, cilindros, asnas, policromia –, a fusão dos pólos do útil e
do belo, que é, como se sabe, uma das aspirações da moderna arquitectura.
Embora confinada à matéria, não é hostil nem estranha ao espírito.
Esta construção tem originado
controvérsia. Regozijemo-nos. É sinal que galvanizou as gentes da terra. Não se
fala do que se despreza ou ignora, mas sim do que em nós ressoa com apelos de
partilha e júbilo. Mas, para melhor nos entendermos, afigura-se-me vantajoso
esclarecer o conceito de cultura, principalmente na hora que vivemos, em que o
vozear da quantidade se impõe ao tímido sussurro da qualidade.
Retenhamos, para tal fim, este
juízo de Matthew Arnold que, pela sua singeleza, simplifica e ilumina a polissemia
do vocábulo: “Cultura é a paixão pela suavidade e pela luz e a paixão de
fazê-las prevalecer.”
De facto é isto a cultura. Lugar
de brandas formas luminosas onde se ouça boa música e boa poesia, contemplem
belos quadros, se veja bailado, teatro e cinema; onde pessoas avalizadas nos
falem de ciência, história, literatura, arte e filosofia; mas, outrossim espaço
de restauração do homem no convívio com outros homens, onde se cultive o fulgor
de uma grandeza de alma que derrube tabiques para que todos de todos se
aproximem, para que aprendam a estar juntos, dando-nos conta depois, de que
algo se transformou neles. E do confronto de ideias, num instante raro, possam
assistir ao aparecimento de novos conceitos que os ajudem a ver mundo e vida de
outra maneira. Tudo isto, embora o não pareça, são também acções de cultura.
Razão por que a política não pode apropriar-se dela. É construção e
desconstrução colectiva. Compete a cada um dos cidadãos modelar essa
maravilhosa edificação jamais concluída.
Mas… retomemos a marcha. A manhã perdeu a sua
virgindade inicial e já vai a mais de meio. No fundo da memória ergue-se, em
nítida sonoridade, o verso de René Char: “Não podemos estar atrasados em
relação à vida.”
Dirijo-me para a Senhora da Lapa.
A subida atemoriza-me. Caminho mais devagar. Cada passada é a sílaba de uma
oração desconhecida. Mas uma súbita onda de leveza invade-me o corpo. Quase me
desmaterializo. Oferenda de Deméter ao saltarico de muitos anos atrás. Ser
alado, agora, à medida dos anjos…
O horizonte vai-se dilatando. A
luz revolve a manhã incendiando estevas e carquejas, urzes e arçãs, bela-luz e
alfazemas. E quando atinjo o planalto das capelinhas, ébrio de tanto longe,
hesito em estabelecer uma linha demarcatória entre matéria e espírito, como se,
de repente, se rasgasse um campo magnético de infindáveis surpresas e tudo se
fundisse numa liga de extrema perfeição. Só receio estar a meio de um sonho em
que tudo transitou para a esfera do irreal. Acaso o espírito milenário do monte
a querer superar a imobilidade das coisas.
Mas, na verdade, não sonho.
Vai-se pressentindo com total entrega de alma, um escrínio para esta
preciosidade. Regalo para os olhos, dulçura para o espírito. Uma paz de terra
acomodada. Raras vezes a beleza se entrega assim, tão natural como balido de
ovelha, bago de zimbro, rumorejo de pássaro quase reduzido a árvore.
E a impressão que em nós perdura
é a inexistência de contrastes intensos. Visionamos linhas ondeantes de
colinas, a princípio só esboçadas, e que depois se esfumam e perdem na
intocabilidade de uma natureza virgem, toda ela imbuída de ecos de uma
longínqua idade de ouro. Geografia que se espraia pelo fundamento de uma
abstracção que despoja o visível das qualidades sensíveis. Um dos últimos
ecossistemas a venerar e defender. Uma conversão à autenticidade.
O ar que nos envolve é de extrema
pureza. Ninguém nos previne do tempo que gastamos a respirá-lo, nem por ele nos
cobra portagem. É uma dádiva do próprio monte.
Debruçamo-nos no miradouro. Vila
flor estende-se a nossos pés, surpreendentemente bela: formas longilíneas a
indiciarem a postura de um corpo feminino reclinado na prata tremulante das
oliveiras. Rosto metafísico a perscrutar uma pacificação de inexprimível
pureza.
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Termina aqui a fulguração da
minha viagem. Não pude ir mais longe. Limitações que não consegui superar.
Reconheço-o até à desmontagem última de mim próprio. Estive perto de atingir o
cristal da manhã, esse diamante de absoluto na truculência e vacuidade do
tempo. Sou demasiado humano. É uma tarefa para os deuses.
João
de Sá
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