sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

ENTRE EFÉMERO E ETERNO ROMAGEM AO CRISTAL DA MANHÃ (2) - João de Sá


Por João de Sá

 O insigne monarca, em trânsito para Trancoso a fim de firmar conúbio com Isabel de Aragão, era trovador de subido merecimento. O dom da poesia sobrelevava nele as insígnias do poder. As mãos afeitas a idealizarem caravelas voltam-se para a terra e traçam, amorosamente, os contornos de uma flor. Em vez do rei surge o vate rendido ao painel paradisíaco de fontes e bosques, de uma fluidez de horizontes vastíssimos e apelantes, que bem podia ser erguido como cenário de futura cantiga de amigo. Emocionado com a beleza do lugar, trocou-lhe o prosaico nome de Póvoa de Além do Sabor, por outro mais de acordo com a substância do seu ridente existir – VILA FLOR.
Não conheço outra terra que se vanglorie do privilégio de ter sido baptizada por um rei. Visitando-a demoradamente, como eu o estou fazendo, atingiremos melhor o sentido do Monarca-lavrador ao despir manto e depor ceptro e coroa, em plena serrania, para uma entrega plena ao fascínio do espaço descoberto.
Mas o instante é de transfiguração. Prodigioso equilíbrio de força e leveza. O bloco de pedra a desdobrar-se em pergaminho de foral, ou quilha de navio, ou jeito de arado, ou cantar de amor… Vou folheando um livro lido e relido. Sei-o de cor. Contudo domina-me a estranha impressão de vir aqui pela primeira vez, o primeiro contacto com a caligrafia que só o amor estrutura e só com amor se escreve…
Emergindo da enorme massa de pedra, superando-a prodigiosamente, a figura egrégia do “Plantador de naus a haver” torna-se linha de força para onde converge a plasticidade do conjunto. Sublimação da matéria. Somos todos nós, sob as insígnias da realeza que nos outorgou o ensejo de olharmos o Sul, o futuro, ufanos do direito de cidadania que nos foi concedido.
Avenida fora, avanço na direcção dos Paços do Concelho. Nos confins do horizonte os contornos imprecisos do “Frade” a quererem arrastar-me para o passado. No entanto, oponho-me firmemente, já que o momento só de presente se tece.
Passo ao lado da edificação da actual Biblioteca: vidro, cimento e ferro. Não acho estes materiais condizentes com os inefáveis seres chamados livros. Nada me transmitem, não foi esta a minha primeira ara de culto ao livro. Provenho da antiga, primeiro num salão do Município, depois no velho casarão do Museu.
Quanta recordação! O prazer de segurar um livro nas mãos estremecentes. Uma súbita ansiedade abalando-me todo o corpo. O aperceber-me de que estava na presença de um luminoso arco de ponte a vencer as idades. Às vezes, a meio da noite, as palavras erguiam-se do papel que já fora árvore, pássaros esvoaçantes em busca do galho perdido, e eu acordava e corria a acender o candeeiro de petróleo, para um convívio com seres reais que durava até ao amanhecer. Quanto lhes devo. Foram a minha primeira porta para a Vida.
Confronto-me, perto, com o canteiro da meia-laranja alindado e engrandecido. Saudades frementes. Desejos de me sentar num dos bancos, ficar por aqui, como outrora nas noites de passeio na Avenida, em que anelava diluir-me no céu estrelado e ir em busca da outra metade para atingir uma esfera perfeita, um valor supremo que me fizesse ascender ao eterno e me libertasse do efémero.
Eis o Centro de Cultura. Cá está, na sua engenhosa articulação de linhas e volumes, na sua compleição de obra aberta, à espera da complementaridade que cada cidadão bem intencionado queira conceder-lhe.
Parece ter-se conseguido aqui, através do ritmo e da proporcionalidade de um hábil jogo de formas – arcarias, colunas, capitéis, cilindros, asnas, policromia –, a fusão dos pólos do útil e do belo, que é, como se sabe, uma das aspirações da moderna arquitectura. Embora confinada à matéria, não é hostil nem estranha ao espírito.
Esta construção tem originado controvérsia. Regozijemo-nos. É sinal que galvanizou as gentes da terra. Não se fala do que se despreza ou ignora, mas sim do que em nós ressoa com apelos de partilha e júbilo. Mas, para melhor nos entendermos, afigura-se-me vantajoso esclarecer o conceito de cultura, principalmente na hora que vivemos, em que o vozear da quantidade se impõe ao tímido sussurro da qualidade.
Retenhamos, para tal fim, este juízo de Matthew Arnold que, pela sua singeleza, simplifica e ilumina a polissemia do vocábulo: “Cultura é a paixão pela suavidade e pela luz e a paixão de fazê-las prevalecer.”
De facto é isto a cultura. Lugar de brandas formas luminosas onde se ouça boa música e boa poesia, contemplem belos quadros, se veja bailado, teatro e cinema; onde pessoas avalizadas nos falem de ciência, história, literatura, arte e filosofia; mas, outrossim espaço de restauração do homem no convívio com outros homens, onde se cultive o fulgor de uma grandeza de alma que derrube tabiques para que todos de todos se aproximem, para que aprendam a estar juntos, dando-nos conta depois, de que algo se transformou neles. E do confronto de ideias, num instante raro, possam assistir ao aparecimento de novos conceitos que os ajudem a ver mundo e vida de outra maneira. Tudo isto, embora o não pareça, são também acções de cultura. Razão por que a política não pode apropriar-se dela. É construção e desconstrução colectiva. Compete a cada um dos cidadãos modelar essa maravilhosa edificação jamais concluída.

Mas…  retomemos a marcha. A manhã perdeu a sua virgindade inicial e já vai a mais de meio. No fundo da memória ergue-se, em nítida sonoridade, o verso de René Char: “Não podemos estar atrasados em relação à vida.”
Dirijo-me para a Senhora da Lapa. A subida atemoriza-me. Caminho mais devagar. Cada passada é a sílaba de uma oração desconhecida. Mas uma súbita onda de leveza invade-me o corpo. Quase me desmaterializo. Oferenda de Deméter ao saltarico de muitos anos atrás. Ser alado, agora, à medida dos anjos…
O horizonte vai-se dilatando. A luz revolve a manhã incendiando estevas e carquejas, urzes e arçãs, bela-luz e alfazemas. E quando atinjo o planalto das capelinhas, ébrio de tanto longe, hesito em estabelecer uma linha demarcatória entre matéria e espírito, como se, de repente, se rasgasse um campo magnético de infindáveis surpresas e tudo se fundisse numa liga de extrema perfeição. Só receio estar a meio de um sonho em que tudo transitou para a esfera do irreal. Acaso o espírito milenário do monte a querer superar a imobilidade das coisas.

Mas, na verdade, não sonho. Vai-se pressentindo com total entrega de alma, um escrínio para esta preciosidade. Regalo para os olhos, dulçura para o espírito. Uma paz de terra acomodada. Raras vezes a beleza se entrega assim, tão natural como balido de ovelha, bago de zimbro, rumorejo de pássaro quase reduzido a árvore.
E a impressão que em nós perdura é a inexistência de contrastes intensos. Visionamos linhas ondeantes de colinas, a princípio só esboçadas, e que depois se esfumam e perdem na intocabilidade de uma natureza virgem, toda ela imbuída de ecos de uma longínqua idade de ouro. Geografia que se espraia pelo fundamento de uma abstracção que despoja o visível das qualidades sensíveis. Um dos últimos ecossistemas a venerar e defender. Uma conversão à autenticidade.
O ar que nos envolve é de extrema pureza. Ninguém nos previne do tempo que gastamos a respirá-lo, nem por ele nos cobra portagem. É uma dádiva do próprio monte.
Debruçamo-nos no miradouro. Vila flor estende-se a nossos pés, surpreendentemente bela: formas longilíneas a indiciarem a postura de um corpo feminino reclinado na prata tremulante das oliveiras. Rosto metafísico a perscrutar uma pacificação de inexprimível pureza.
          
A manhã há muito se extinguiu. Continuo sentado num banco de pedra, descontente e intranquilo por não ter dito o mais importante. Porventura evidenciei o acessório em prejuízo do essencial. Há manifestações que não são da ordem do dizível, mas da esfera do silêncio, e por isso mesmo portadoras de uma carga emotiva que emudece.
Termina aqui a fulguração da minha viagem. Não pude ir mais longe. Limitações que não consegui superar. Reconheço-o até à desmontagem última de mim próprio. Estive perto de atingir o cristal da manhã, esse diamante de absoluto na truculência e vacuidade do tempo. Sou demasiado humano. É uma tarefa para os deuses.
João de Sá

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