António Martinho Baptista
(texto e fotografias)
antigo director do Centro
Nacional de Arte Rupestre
|
E como em
muita da restante arte paleolítica europeia, é também muito significativo e
merece realce o facto da evidente alta qualidade estética de muitas das
produções artísticas do Vale do Côa. Embora os modelos estilísticos nos pareçam
muito padronizados e mesmo estereotipados, em particular nas gravuras da fase
antiga, é patente a criatividade e a invenção artística em rochas como a 3 da
Quinta da Barca, a 1 de Piscos, a 3 da Penascosa, a 24 da Ribeira de Piscos,
entre muitas outras. E aqui merece destaque também a invenção do movimento
através da adjunção de duas e até três cabeças num mesmo animal, sugerindo uma
animação figurativa. Esta característica tornou-se mesmo uma imagem de marca do
Vale do Côa, já que é um aspecto muito pouco conhecido na restante arte
paleolítica europeia.
Ao longo de 1995 e nos primeiros
meses de 1996 seriam fixados os limites geográficos e a distribuição espacial
desta até há pouco quase insuspeita província rupestre que hoje é a Arte do
Vale do Côa. E que se centra, é evidente, na região do Baixo Côa, mas
ultrapassa em muito estas singulares fronteiras geográficas e que por isso
mesmo se pode dizer que é um longo ciclo artístico disperso por uma vasta
região do Alto Douro português. Com exemplos já conhecidos que vão desde o Alto
Sabor, ao Baixo Tua, ao Águeda e ao próprio vale do Douro. Mas os seus mais
importantes testemunhos centram-se no Baixo Vale do Côa entre a Faia, o sítio
mais a montante, e a própria foz do Côa.
Os estudos que desenvolvemos nos
últimos 16 anos desta ampla província artística, primeiro no âmbito do CNART e
depois do PAVC, e o importante contributo que foi sendo carreado pelos estudos
de enquadramento arqueológico à arte pré-histórica levados a cabo pelas equipas
de João Zilhão e do PAVC (AUBRY, Ed.
2009), permitem-nos hoje afirmar com alguma segurança arqueológica que os
ciclos paleolíticos do Côa se distribuem em dois grandes períodos
crono-culturais, o Gravetto-Solutrense (±25.000 - 18.000 anos BP) e o
Magdalenense (±18.000 - ±12.000 anos BP) que, ainda que centrados no Baixo Côa,
têm áreas de dispersão e algumas características de estilo e implantação
relativamente bem diferenciadas.
Assim, as decorações pertencentes
ao grupo mais antigo e a que poderemos chamar como o período arcaico do Côa,
são preferencialmente localizadas nas margens das últimas grandes praias do
Côa, como sejam os sítios da Penascosa/Quinta da Barca, foz da Ribeira de
Piscos e Fariseu e Canada do Inferno. Estes três últimos sítios estão hoje algo
descaracterizados pois sofrem ainda a influência permanente da subida das águas
por efeito da albufeira da barragem do Pocinho, que se interioriza bastante
pelo Côa. As características fundamentais das historiações deste primeiro
período podem sintetizar-se assim: são na sua generalidade figuras zoomórficas,
algumas de grandes dimensões (quase em tamanho natural como os auroques da
rocha 13 da foz de Piscos ou os auroques e equídeo, esta a maior figura do Côa,
da rocha 17 da Canada do Inferno), obtidas quer por incisão linear simples,
quer por picotagens profundas, agrupam-se preferencialmente nas partes mais
elevadas dos painéis (rochas 1 da Canada do Inferno, 6 da Penascosa...,
aparentes marcadores de paisagem) mas também podem recamar toda uma superfície
apainelada e sobrepõem-se intencionalmente, por vezes em densos palimpsestos
com ricas estratigrafias figurativas. É uma sobreposição estruturada em
dispositivo ilusório, ou seja, as gravuras vão-se sobrepondo numa aparentemente
longa escala temporal, realizadas por verdadeiros iniciados em modelos
padronizados e devem ser encaradas como verdadeiros ex-votos dispostos em
lugares de eleição. É o que demonstram as acumulações figurativas de rochas
como a 3 da Penascosa, a 1 do Fariseu e a impressionante 1 da Quinta da Barca.
Esta, pela sua própria localização, como que unindo os dois importantes sítios
da Penascosa e da Quinta da Barca, temo-la encarado como uma espécie de axis-mundi do ordenamento figurativo do
período arcaico. Se encararmos a amplidão destes dois sítios como se fossem um
dos nossos templos, a rocha 1 da Quinta da Barca ocuparia o espaço mais
enobrecido do altar-mor.
Cerva em traço múltiplo inciso do período final da arte paleolítica do Côa. Rocha 16 de Vale de José Esteves (pormenor). |
A fauna figurada é constituída na
sua quase totalidade por representações dos maiores herbívoros que então
ocupavam o vale do Côa: cavalos, auroques, cabras (montês e algumas camurças) e
cervídeos, a que se juntam alguns raríssimos peixes. Neste período não são
conhecidas quaisquer representações antropomórficas.
As gravuras deste período, embora
sejam as mais antigas, são ainda hoje as que melhor são percepcionadas pelos
visitantes por serem de traço profundo, e tornaram-se por isso mesmo as
popularmente mais conhecidas do Vale do Côa.
As gravuras do período
Magdalenense, ainda que apareçam um pouco dispersas por todo o vale,
concentram-se maioritariamente junto à foz do Côa, interiorizando-se pelos
pequenos mas cavados vales adjacentes, alguns já pendentes ao Douro, como os
importantes sítios de Vale de José Esteves, Vermelhosa e Vale de Cabrões.
Tecnicamente são agora abandonadas as picotagens e os motivos são apenas
incisos, obtidos por traços finos rasgados por afiados sílexes ou quartzos e
são por isso mesmo hoje de mais difícil visualização, patinadas que estão pelo
passar dos milénios. Quando eram produzidas, estas gravuras tinham, no entanto,
traços esbranquiçados e eram bem visíveis. Estes motivos podiam ser apenas
sinalados por traços simples que definiam os contornos das figuras (um dos
exemplos mais notáveis deste tipo de gravação é a cabra da rocha 5 de Vale de
Cabrões), ou preenchidas por densas incisões que marcavam as pelagens e podiam
até conceder alguma volumetria aos animais. Um belo exemplo desta técnica de
execução é a família de cervídeos da zona central da rocha 16 do Vale de José
Esteves, uma das poucas rochas que foi replicada para a exposição permanente do
Museu do Côa. Estas incisões de traço múltiplo são muito típicas do final do
período glaciar.
A fauna figurada é a mesma que
está presente no período antigo, mas agora com uma maior presença dos
cervídeos, o que se compreende até pela expansão que esta espécie terá tido ao
longo do tardiglaciar. Surgem agora também as primeiras e raras representações
de humanos ou humanóides. O mais notável de todos os conhecidos no Côa é o
antropomorfo ictifálico da rocha 2 de Piscos, no topo de uma densa
estratigrafia figurativa onde se sobrepõe a dois auroques e um pequeno equídeo.
Deve assinalar-se também a presença de um corpo de signos quase todos de
carácter abstracto-simbólico e linear e que estão mais directamente ligados ao
universo da arte Magdalenense e do primeiro período da arte holocénica.
Equídeos com as cabeças enlaçadas. Rocha 1 da Ribeira de Piscos. |
A fixação dos limites do Parque
Arqueológico em meados de 1996, com uma área de cerca de 20.000 hectares ,
procurou abranger praticamente toda a arte rupestre que era conhecida à data,
estendendo-se desde o Vale da Casa, o sítio mais a Norte já no Douro, até à
Faia, a estação rupestre mais a Sul, já no ambiente granítico do Côa. As
prospecções continuadas que o já extinto Centro Nacional de Arte Rupestre
prosseguiu na região durante anos permitiram ampliar bastante o número de
rochas historiadas e até alargar as áreas de influência rupestre, mas o grosso
dos achados continua a concentrar-se no interior dos limites do Parque
Arqueológico, cuja razão de ser fundamental continua a ser o da conservação,
estudo e fruição da arte rupestre regional.
Sem comentários:
Enviar um comentário