quinta-feira, 31 de maio de 2012

António Martinho Baptista - Eu projecto, tu projectas ... O Parque Arqueológico e o Museu do Côa (2)


António Martinho Baptista
(texto e fotografias)
antigo director do Centro
Nacional de Arte Rupestre


E como em muita da restante arte paleolítica europeia, é também muito significativo e merece realce o facto da evidente alta qualidade estética de muitas das produções artísticas do Vale do Côa. Embora os modelos estilísticos nos pareçam muito padronizados e mesmo estereotipados, em particular nas gravuras da fase antiga, é patente a criatividade e a invenção artística em rochas como a 3 da Quinta da Barca, a 1 de Piscos, a 3 da Penascosa, a 24 da Ribeira de Piscos, entre muitas outras. E aqui merece destaque também a invenção do movimento através da adjunção de duas e até três cabeças num mesmo animal, sugerindo uma animação figurativa. Esta característica tornou-se mesmo uma imagem de marca do Vale do Côa, já que é um aspecto muito pouco conhecido na restante arte paleolítica europeia.
Ao longo de 1995 e nos primeiros meses de 1996 seriam fixados os limites geográficos e a distribuição espacial desta até há pouco quase insuspeita província rupestre que hoje é a Arte do Vale do Côa. E que se centra, é evidente, na região do Baixo Côa, mas ultrapassa em muito estas singulares fronteiras geográficas e que por isso mesmo se pode dizer que é um longo ciclo artístico disperso por uma vasta região do Alto Douro português. Com exemplos já conhecidos que vão desde o Alto Sabor, ao Baixo Tua, ao Águeda e ao próprio vale do Douro. Mas os seus mais importantes testemunhos centram-se no Baixo Vale do Côa entre a Faia, o sítio mais a montante, e a própria foz do Côa.
Os estudos que desenvolvemos nos últimos 16 anos desta ampla província artística, primeiro no âmbito do CNART e depois do PAVC, e o importante contributo que foi sendo carreado pelos estudos de enquadramento arqueológico à arte pré-histórica levados a cabo pelas equipas de João Zilhão e do PAVC  (AUBRY, Ed. 2009), permitem-nos hoje afirmar com alguma segurança arqueológica que os ciclos paleolíticos do Côa se distribuem em dois grandes períodos crono-culturais, o Gravetto-Solutrense (±25.000 - 18.000 anos BP) e o Magdalenense (±18.000 - ±12.000 anos BP) que, ainda que centrados no Baixo Côa, têm áreas de dispersão e algumas características de estilo e implantação relativamente bem diferenciadas.
Assim, as decorações pertencentes ao grupo mais antigo e a que poderemos chamar como o período arcaico do Côa, são preferencialmente localizadas nas margens das últimas grandes praias do Côa, como sejam os sítios da Penascosa/Quinta da Barca, foz da Ribeira de Piscos e Fariseu e Canada do Inferno. Estes três últimos sítios estão hoje algo descaracterizados pois sofrem ainda a influência permanente da subida das águas por efeito da albufeira da barragem do Pocinho, que se interioriza bastante pelo Côa. As características fundamentais das historiações deste primeiro período podem sintetizar-se assim: são na sua generalidade figuras zoomórficas, algumas de grandes dimensões (quase em tamanho natural como os auroques da rocha 13 da foz de Piscos ou os auroques e equídeo, esta a maior figura do Côa, da rocha 17 da Canada do Inferno), obtidas quer por incisão linear simples, quer por picotagens profundas, agrupam-se preferencialmente nas partes mais elevadas dos painéis (rochas 1 da Canada do Inferno, 6 da Penascosa..., aparentes marcadores de paisagem) mas também podem recamar toda uma superfície apainelada e sobrepõem-se intencionalmente, por vezes em densos palimpsestos com ricas estratigrafias figurativas. É uma sobreposição estruturada em dispositivo ilusório, ou seja, as gravuras vão-se sobrepondo numa aparentemente longa escala temporal, realizadas por verdadeiros iniciados em modelos padronizados e devem ser encaradas como verdadeiros ex-votos dispostos em lugares de eleição. É o que demonstram as acumulações figurativas de rochas como a 3 da Penascosa, a 1 do Fariseu e a impressionante 1 da Quinta da Barca. Esta, pela sua própria localização, como que unindo os dois importantes sítios da Penascosa e da Quinta da Barca, temo-la encarado como uma espécie de axis-mundi do ordenamento figurativo do período arcaico. Se encararmos a amplidão destes dois sítios como se fossem um dos nossos templos, a rocha 1 da Quinta da Barca ocuparia o espaço mais enobrecido do altar-mor. 
Cerva em traço múltiplo inciso do período final da arte paleolítica do Côa. Rocha 16 de Vale de José Esteves (pormenor).
A fauna figurada é constituída na sua quase totalidade por representações dos maiores herbívoros que então ocupavam o vale do Côa: cavalos, auroques, cabras (montês e algumas camurças) e cervídeos, a que se juntam alguns raríssimos peixes. Neste período não são conhecidas quaisquer representações antropomórficas.
As gravuras deste período, embora sejam as mais antigas, são ainda hoje as que melhor são percepcionadas pelos visitantes por serem de traço profundo, e tornaram-se por isso mesmo as popularmente mais conhecidas do Vale do Côa. 
As gravuras do período Magdalenense, ainda que apareçam um pouco dispersas por todo o vale, concentram-se maioritariamente junto à foz do Côa, interiorizando-se pelos pequenos mas cavados vales adjacentes, alguns já pendentes ao Douro, como os importantes sítios de Vale de José Esteves, Vermelhosa e Vale de Cabrões. Tecnicamente são agora abandonadas as picotagens e os motivos são apenas incisos, obtidos por traços finos rasgados por afiados sílexes ou quartzos e são por isso mesmo hoje de mais difícil visualização, patinadas que estão pelo passar dos milénios. Quando eram produzidas, estas gravuras tinham, no entanto, traços esbranquiçados e eram bem visíveis. Estes motivos podiam ser apenas sinalados por traços simples que definiam os contornos das figuras (um dos exemplos mais notáveis deste tipo de gravação é a cabra da rocha 5 de Vale de Cabrões), ou preenchidas por densas incisões que marcavam as pelagens e podiam até conceder alguma volumetria aos animais. Um belo exemplo desta técnica de execução é a família de cervídeos da zona central da rocha 16 do Vale de José Esteves, uma das poucas rochas que foi replicada para a exposição permanente do Museu do Côa. Estas incisões de traço múltiplo são muito típicas do final do período glaciar.
A fauna figurada é a mesma que está presente no período antigo, mas agora com uma maior presença dos cervídeos, o que se compreende até pela expansão que esta espécie terá tido ao longo do tardiglaciar. Surgem agora também as primeiras e raras representações de humanos ou humanóides. O mais notável de todos os conhecidos no Côa é o antropomorfo ictifálico da rocha 2 de Piscos, no topo de uma densa estratigrafia figurativa onde se sobrepõe a dois auroques e um pequeno equídeo. Deve assinalar-se também a presença de um corpo de signos quase todos de carácter abstracto-simbólico e linear e que estão mais directamente ligados ao universo da arte Magdalenense e do primeiro período da arte holocénica.
Equídeos com as cabeças enlaçadas. Rocha 1 da Ribeira de Piscos.
A enorme importância arqueológica da arte paleolítica tem ofuscado bastante a também grande quantidade de testemunhos gráficos da 2ª Idade do Ferro no Vale do Côa/Alto Douro. Esta é toda incisa (filiforme) e figura um outro tipo de imaginário rupestre, próprio de uma sociedade nos alvores da difusão da escrita e da conquista romana da região, o que assinala também o final do ciclo rupestre proto-histórico. A arte rupestre da Idade do Ferro foi produzida, não por verdadeiros iniciados como o sugerem ser os artistas paleolíticos, mas por outros actores que, ainda que num mesmo palco geográfico e muitos milhares de anos depois, interpretavam outras motivações, ritualizavam outros mitos, outras formas de vida social. Se os primeiros eram caçadores-recolectores para quem o animal era o centro da acção gráfica, o "lugar" do mito, vivendo numa vastidão de espaços com uma baixíssima carga demográfica, os homens da Idade do Ferro eram gente com uma hipotética hierarquização social em bandos aparentemente condicionados por elites guerreiras, se atentarmos nos textos dos autores clássicos, como as descrições de Estrabão sobre os Lusitanos que seriam bem ilustradas por algumas das gravuras sidéricas da foz do Côa, como é o caso do guerreiro apeado da rocha 6 de Vale de Moinhos. As figurações rupestres representam quer guerreiros armados, montados em cavalos ou apeados, em cenas de caça com o auxílio de cães (a mais significativa é ainda a da rocha 23 do Vale da Casa) ou luta singular (o melhor exemplo é o da rocha 1 da Vermelhosa), ou até simples cenas de quotidiano. É um imaginário muito mais antropocêntrico, sendo as representações humanas normalmente o centro da acção, que comandam. Estas figuras são quase sempre gravadas como se fossem simples esboços, com formas desproporcionadas, quase caricaturais, mas também elas estilisticamente muito estereotipadas. São significativas e bem características as padronizações das cabeças de pássaro de muitos antropomorfos (em particular os guerreiros) e os quartos traseiros em ferradura dos quadrúpedes (cavalos, cães e veados preferencialmente), com os melhores exemplos no Vale da Casa (Douro). A presença de armas, como na bem conhecida rocha 10 do Vale da Casa, também ela replicada no Museu do Côa já que está submersa desde 1983, figurando modelos metálicos de lanças e falcatas bem paralelizáveis com exemplares conhecidos da cultura material de outras regiões peninsulares, nomeadamente do mundo Ibérico, permitiu-nos desde muito cedo fixar bem os horizontes cronológicos desta panóplia de motivos, genericamente inseríveis na IIª Idade do Ferro. E a ausência de arcos e flechas, permitirá ligar o ordenamento social deste período a uma sociedade guerreira e heroicizada, o que está de acordo com o que se conhece no mundo Ibérico coevo de outras regiões peninsulares na Meseta e mais a oriente. Há, como se disse, um maior desprendimento estilístico dos traços nesta arte sidérica, muito longe dos padrões impressivamente mais naturalistas dos modelos figurativos do Paleolítico superior, que por vezes se sobrepõem nos mesmo painéis, em particular na região da foz do Côa, a zona de maior concentração de gravuras incisas da Idade do Ferro, e por isso mesmo aqui por vezes sobrepostas à arte tardiglaciar (um bom padrão de cronologia relativa), também ela exclusivamente incisa e de traço múltiplo e que também aqui tem a sua área de maior expansão.
A fixação dos limites do Parque Arqueológico em meados de 1996, com uma área de cerca de 20.000 hectares, procurou abranger praticamente toda a arte rupestre que era conhecida à data, estendendo-se desde o Vale da Casa, o sítio mais a Norte já no Douro, até à Faia, a estação rupestre mais a Sul, já no ambiente granítico do Côa. As prospecções continuadas que o já extinto Centro Nacional de Arte Rupestre prosseguiu na região durante anos permitiram ampliar bastante o número de rochas historiadas e até alargar as áreas de influência rupestre, mas o grosso dos achados continua a concentrar-se no interior dos limites do Parque Arqueológico, cuja razão de ser fundamental continua a ser o da conservação, estudo e fruição da arte rupestre regional.

 in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

 (continua)


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