segunda-feira, 30 de abril de 2012

A. Júlio Andrade / Fernanda Guimarães - Marranos de Lagoaça no Tribunal da Inquisição (2)



Fernanda
Guimarães
A.Júlio Andrade
Não vamos analisar os processos daqueles prisioneiros, mas tão só referir que o homem que dirigiu estas prisões em Lagoaça dava pelo nome de Domingos Gonçalves, morador na aldeia de Peredo, limite do concelho de Chacim. E há um episódio significativo sobre os seus métodos de “espionagem” inquisitorial. Vamos contar.
Aconteceu 3 anos antes da prisão de Manuel Garcia e restante família. Certo dia, atravessava este a ponte de Remondes sobre o rio Sabor, indo para Chacim. Atrás dele, surgiu outro caminhante que ele não conhecia e que se lhe dirigiu nos seguintes termos: - O senhor não é o pai de Francisco Garcia, de Lagoaça? Manuel respondeu que sim e a conversa continuou, com o desconhecido a dizer que era descendente de cristãos-novos, pelo lado paterno, primo carnal de Luís Nunes Pinete, casado com Gaspar Garcia… Acrescentou nomes de mais parentes e amigos conhecidos do outro, alguns dos quais vítimas da Inquisição e declarou-se seguidor da lei de Moisés. Naturalmente que Manuel Garcia entrou também de falar de si e da sua crença, não imaginando que se estava confessando a um trânsfuga da sua nação, a um colaborador do terrífico tribunal, a alguém que, tempos depois, o levaria preso para Coimbra.[1]
Decorreram com celeridade os processos dos Garcia que, de imediato, confessaram seus pecados e pediram perdão. Todos foram condenados em penas espirituais, saindo penitenciados no auto-de-fé celebrado em Coimbra em 18 de Dezembro de 1701.
Também neste auto saiu penitenciado Luís Garcia, o outro filho de Manuel, já por duas vezes referido neste texto. Luís, porém, tinha sido encarcerado há mais de um ano. E antes dele, fora sua mulher, Catarina Lopes.
Voltemos então a Mogadouro, aos anos de 1671, ao nascimento de Luís Garcia que, ainda em pequeno, acompanhou os pais na mudança para Lagoaça. E seguiu também o pai nos ofícios de curtidor e sapateiro. E pelos pais foi educado na religião de Moisés, quando atingiu os 14 anos, conforme declarou aos inquisidores. E recordou mesmo uma das primeiras orações que a mãe lhe ensinou, a qual rezava ao amanhecer:
Bendita la luz del dia
Muita paz e alegria
E gracia para lo servir[2]

Ao início da última década do século XVII, Luís Garcia casou na vila de Chacim e ali ficaram a residir alguns anos. Por 4 dias “assistiram” em casa de seu irmão Francisco Garcia, também ali casado e que então se mudou para Bragança, o que indiciará alguns problemas nas relações com a família. E o casal deixou a terra e foi montar casa em Lagoaça. Por qualquer razão que não conseguimos apurar, acabaram por alugar uma casa na aldeia de Fornos, distante 1 ou 2 quilómetros, continuando a curtir seus couros na tinaria do pai.
À data da prisão tinha Luís 3 peles a curtir e tinha solas na oficina para o fabrico de dúzia e meia de pares de sapatos, para além de uns arráteis de seda. E tinha algumas dívidas, provenientes de couros comprados, pão que lhe fiaram e renda de casa em atraso – segundo ele contou aos inquisidores.
De resto, parece que tinha especiais relações com um primo (Tomás Herrera) que morava em Vitigudinho e pertencia à enriquecida classe dos contratadores. Por isso fazia constantes deslocações a Castela, com travessia do rio Douro no sítio da Barca de Vilvestre, depreendendo nós negociava (ou contrabandeava) produtos entre os dois reinos. [3]
Não vamos falar do processo de Luís Garcia, que nada oferece de especial interesse. Vamos antes falar de sua mulher, cujo processo se apresenta como um verdadeiro catecismo dos marranos de Trás-os-Montes.
Estranhamente, Catarina Lopes nasceu em Chacim, por 1670, sendo filha de Manuel Mendes, de Vinhais e de Antónia Barrenta, de Valladolid, moradores em Vinhais. Possivelmente o casal ter-se-á mudado de Vinhais para Chacim, com receio de alguma investida da Inquisição naquela terra. Sim, que o historial da família paterna de Catarina era já muito longo. Com efeito:
* O avô, João Mendes, foi queimado nas fogueiras da Inquisição.[4]
* A avó, Brites Lopes, faleceu nos cárceres de Coimbra.[5]
* O tio, António Lopes, o Mazona, de alcunha, foi, por duas vezes, prisioneiro do Santo Ofício e 2 de seus filhos teriam, mais tarde, idêntico destino.[6]
* A mulher deste, Inês Lopes Vinagre, sofreu nos mesmos cárceres.[7]
Extenso também era o rol de denúncias feitas na Inquisição contra Catarina Lopes, nenhuma delas feitas por gente de Lagoaça, mas de outras terras trasmontanas, principalmente de Chacim. Vejamos uma delas, particularmente incriminatória para Catarina, já que o feito se terá passado em sua própria casa, em Chacim, por 1695, na ocasião da morte de sua mãe, Antónia Barrenta. Vejamos então o testemunho produzido por uma tal Maria Henriques, de Chacim, na Inquisição de Coimbra:
- Disse que haverá 5 anos, em Chacim, em casa de Catarina Lopes Barrenta, se achou com ela e com seu marido e com Brites Barrenta, sua irmã, casada com Sebastião Lopes, e com João, solteiro, irmão das mesmas, que terá 15 anos, todos primos segundos dela confidente (…) ao assistir ao mortório de Antónia Barrenta, mãe de Catarina Lopes Barrenta e por observância da dita lei, ficaram assistindo a dita moribunda até falecer, pondo-lhe à cabeceira duas candeias acesas com torcidas novas e azeite limpo, rezando a oração do padre nosso sem dizer Jesus no fim; e depois de a dita pessoa expirar, a amortalharam e cortaram as unhas, em presença das mencionadas pessoas. E Catarina Lopes e Inês Lopes a amortalharam com camisa nova, em lençol novo, e assim envolta, lhe meteram na boca um grão de aljôfar, e lhe puseram à cabeceira um pente e uma tigela de água para se lavar e pentear; e para a ceia bacalhau frito, rosca de pão duro e marmelada; e depois de enterrá-la a dita pessoa defunta, assistiram todos na mesma casa, por cerimónia judaica, 7 dias e 7 noites, sem se deitarem, tendo à cabeceira da cama da dita pessoa defunta, em todas as 7 noites, candeeiro aceso com torcidas novas e azeite limpo, até se apagar por si, dando a ceia que a dita pessoa defunta havia de comer, a duas pessoas pobres da nação. [8]
Vamos transcrever também uma denúncia feita por sua sogra, Maria do vale, onde se mostra que celebravam em família o dia grande (Kipur):
- Disse que, haverá 4 ou 5 anos, em Fornos, em casa de seu filho, Luís Garcia, casado com Catarina Lopes Barrenta, se achou com ambos e se declararam seguidores da lei de Moisés. E que, haverá 3 ou 4 anos, em Lagoaça, em casa dela confidente, se achou com seu marido e com os filhos, António, Luís e Diogo Garcia e com suas noras, Catarina Lopes barrenta e Francisca Fernandes e estando todos os 7 por ocasião de jejuarem e guardarem o dia grande…[9]
E por falar em jejum do dia grande, acrescentemos uma denúncia feita por Brites Lopes Ruiva[10] dizendo que, no ano de 1690, se juntaram 11 pessoas em casa de Ana Lopes, sua tia e tia de Catarina Barrenta “para guardar o jejum do dia grande”, dizendo mais o seguinte:
- E estando todo o dia sem comer nem beber senão à noite, em que cearam caldo de grãos e peixe, em louça nova e toalhas novas e na cama lançaram roupa lavada e ela confidente e suas sobrinhas Joana e Branca Lopes varreram a casa às avessas, da porta da rua para dentro, e limparam os candeeiros pondo-lhes torcidas novas e azeite limpo.
Voltemos agora para a aldeia de Fornos, ao dia12 de Julho de 1700, à prisão de Catarina Lopes Barrenta que ali deixou uma filha de 5 anos e um filho de 2 anos e meio. O marido ficou mas, por 4 meses apenas, que também o vieram prender.
Não vamos aqui relatar os pormenores inerentes ao acto da prisão e à condução da prisioneira até Coimbra, onde foi metida em uma cela da cadeia de companhia com Antónia Pereira, uma rapariga sua conhecida de Chacim, natural de Freixo de Espada à Cinta e moradora em Chacim, prosélita judaica como ela, a qual viria depois lançar na fogueira mais uma acha incriminatória de Catarina Barrenta:
- Disse que dois anos e três meses esteve no cárcere em companhia de Catarina Lopes Barrenta e na ocasião de esta lhe dizer que não confessasse, que havia de ser pior, porque quando saísse ninguém a havia de favorecer.[11]
E a verdade é que Catarina não aconselhava apenas, antes se mantinha fiel a si própria. Durante mais de 3 anos negou todas as acusações que lhe fizeram e não denunciou ninguém. Ainda na audiência que com ela tiveram os inquisidores em 17 de Fevereiro de 1704, 15 dias antes do auto-de-fé, depois de aqueles lhe dizerem que estava condenada à morte por se manter “convicta, no crime de heresia e apostasia e por herege e apóstata de nossa santa fé católica, negativa e pertinaz…” ela respondia que “não tinha culpas a confessar”.
Mas chegou o dia em que a sua força de ânimo quebrou. Dois dias antes do auto, vendo-se já de mãos atadas e sabendo que iam queimá-la, Catarina entrou de confessar suas culpas e implorar misericórdia e perdão. Foi uma torrente de confissões durante todo o dia. E depois, pela meia-noite, pediu que voltassem a ouvi-la e continuou vomitando pecados e denúncias de correligionários. E continuou pelo dia e noite adentro, véspera do auto-de-fé.
Acabou por conseguir misericórdia e livrar-se das chamas da fogueira, saindo condenada em cárcere e hábito perpétuo e 7 anos de desterro em Angola, no auto-de-fé realizado em Coimbra em 2 de Março de 1704, juntamente com outras 21 marranos de Chacim (2 dos quais queimados na fogueira) e outros mais trasmontanos.
Dois anos passados, Catarina continuava presa na cadeia da Relação do Porto, aguardando que a metessem num barco para Angola, o que não chegou a acontecer. “Por ter 3 filhos, um deles mudo, e padecer de muitas necessidades”, pediu que lhe comutassem o local de desterro, o que foi deferido e com ordem de soltura.
Vamos agora ver um pouco de suas confissões, procurando sobretudo o que disse sobre os rituais e cerimónias judaicas que fazia e as orações que rezava.
Já atrás se falou se falou de ritos mortuários e uma testemunha contou como Catarina Lopes amortalhou a sua mãe. E um dos actos desse ritual foi acender duas candeias, metendo-lhe torcidas novas e azeite limpo. Mas isso não é simples. As coisas não se faziam de qualquer modo. Para fazer a torcida pegava-se numa toalha branca, nova, e estendia-se na mesa. Ao lado, colocava-se uma estriga de linho em rama. Pegava-se então num fio dessa estriga e colocava-se sobre a toalha, rezando-se uma oração. Depois pegava-se em 3 outras fibras de linho e juntavam-se à primeira, repetindo-se a oração. Mas vejam a descrição feita pela própria Catarina, que a prosa é mais colorida, saborosa e autêntica:
- Quando fazia torcidas para as candeias dos defuntos, as fazia de linho em rama, posto sobre uma toalha nova ou lavada e retirando um fio de linho e pondo-o sobre a toalha, disse as palavras seguintes

Bendito Adonay que nos fez e nos criou
E nos mandou e nos encomendou
Nas suas encomendanças
Nas boas e nas santas e nas benditas
Que lavássemos nossas mãos
Em águas esclarecidas
Que déssemos graças e louvores
Às deitadas e às erguidas
Que fizéssemos candelicas
Com azeite de oliva reverdecida
Para alumiar e aclarar esta alma
Do Senhor, santa e bendita.

E depois das ditas palavra, tirava mais três fêveras da estriga e as juntava à primeira, repetindo novamente as sobreditas palavras, e acabadas, tirava mais 13 fêveras de linho que ajuntava com as mais e dixia:

Estas treze que sejam
pelas treze mil vezes
que meu senhor Adonay
lá no monte Sinai
porta do filho de Israel
e por esta alma também.

E se a pessoa defunta era homem, se lançava uma bênção no candeeiro com a mão direita, na forma seguinte:

A bênção que o Senhor botou
sobre Isaac, Jacob, Abraão,
Daniel, Samuel, Moisés e David,
bote o Senhor sobre ti.

E sendo a pessoa defunta mulher, se deitava assim:

A bênção que o Senhor botou
sobre Sara, Rebeca, rainha Ester
e formosa Judite,
bote o Senhor sobre esta alma
e sobre esta candeia. [12]

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

(Continua)

[1] Geralmente eram os familiares da Inquisição que executavam estes trabalhos sujos (ou honrosos!). O facto de esta tarefa ser entregue a alguém que não era familiar ou funcionário do tribunal, explicar-se-á por Chacim ser um concelho muito pequeno e onde os cristãos-novos dispunham de excepcional poder. A verdade, porém, é que Domingos Gonçalves terá mesmo diligenciado a sua promoção a Familiar do Santo Ofício, conforme consta dos seguintes documentos:
IANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações Incompletas, documentos 1330 e 1338 – Diligências de habilitação de Domingos Gonçalves Peredo.
[2] IANTT, Inquisição de Coimbra,  Proc. 978, de Luís Garcia.
[3] Tomás de Herrera foi um dos 5 filhos de Diogo Lopes, irmão de Manuel Garcia. Todos eles, pai e filhos, foram penitenciados pela Inquisição de Valhadolid.
No auto-de –fé de Coimbra de Dezembro de 1701, juntamente com Luís Garcia, foram penitenciados muitos outros marranos do Nordeste Trasmontano, entre eles a avô de Jacob Rodrigues Pereira, Branca Henriques do Vale.
[4] IANTT, Inquisição de Coimbra,  Proc. 3411C de 1658.
João Mendes era filho de Francisco e Leonor Álvares de Vinhais.
[5] IANTT, Inquisição de Coimbra, Proc. 6566C  de 1660.
Brites Lopes era filha de Diogo Fernandes e de Joana Serrão, de Vinhais.
[6] IANTT, Inquisição de Coimbra, Proc. 1789 de António Lopes.
[7] IANTT, Inquisição de Coimbra, Proc, 9834. Inês era filha de Francisco  Lopes Vinagre  e de Beatriz Vaz., de Vila Flor.
[8] IANTT, Inquisição de Coimbra, Proc. 8817 de Maria Henriques.
[9] Por encontrarmos de muito interesse para o estudo da ritualidade mortuária dos marranos de Chacim, aqui reproduzimos o depoimento prestado por Joana Lopes referente à morte de sua irmã e que vem no processo de Catarina Barrenta, folhas 26 a 30: - E estando todas as 15 ao mesmo tempo, ela confidente lavou o corpo da irmã que seria de 10 anos, cortou as unhas dos pés e mãos, lavou-a num alguidar novo que depois quebrou, para que não mais servisse, por cerimónia judaica, e depois, todos juntos assistindo ao corpo da dita defunta, não fizeram mais cerimónia judaica, por entrarem cristãos-velhos a lançar água benta; mas que depois de a levarem para a igreja, foi o avô a casa buscar de jantar para as ditas pessoas, em uma panela nova; e por não trazer toalhas novas ela confidente as foi buscar a casa e comeram o dito jantar nos regaços, em louça nova, com toalhas e colheres novas, tudo por cerimónia judaica. E estiveram todos juntos até à noite, em que se ausentaram Inês Lopes, Margarida Dias, Catarina Álvares da Costa, Ana Lopes da Paz; e as mais pessoas ficaram com ela confidente e no mesmo aposento em que faleceu a mesma defunta estiveram os primeiros 7 dias e noites seguintes à sua morte, sem se despir nem deitar, comendo da mesma forma assim ao jantar como à ceia, o qual comer fazia ela fora de casa, por dizer sua avó, Maria Lopes Vinagre, que tudo o que estava ou se fizesse de comer na casa em que faleceu a dita defunta era trefego e sujo e se não podia comer, e que comendo-se dava pena à alma da dita defunta; e em todos os 7 dias e noites, assim como as mais pessoas, rezavam orações judaicas que ofereciam ao Deus do céu, tudo por intenção da alma da dita defunta. E na casa onde faleceu a dita defunta punha ela confidente à noite candeia acesa com azeite limpo e torcida de linho em rama, até por si se apagar e pela manhã lançava a dita candeia ao lume, assim como a tirava e depois a tornava a consertar, na mesma forma que a primeira vez havia feito. E em todos os 7 dias pôs ela confidente aos pés da cama em que faleceu a dita defunta o jantar e a ceia que ela havia de comer em casa em os tais dias, em louça nova e juntamente uma toalha nova, com uma tigela nova de água para se lavar; tanto que amanhecia, dava ela confidente ao dito seu avô Domingos Lopes, por ser mais pobre, os ditos jantares e ceias e a água a lançava na rua, porque não era bom, conforme a lei de Moisés.
[10] IANTT, Inquisição de Coimbra, Proc. 6310 de 1698, de Brites Lopes Ruivo. Esta era filha de  Domingos Lopes, o Ruivo, ou o Faraó   e  de Maria Lopes, de Chacim.
[11] IANTT, Inquisição de Coimbra, Proc. 9614 de Antónia Pereira.
[12] Esta oração e as que seguem  constam do “Acordão” do processo  de Catarina Lopes.

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